O TEMPO DA MODERNIDADE: APROPRIAÇÕES POLÍTICAS CONCRETAS DE UM CONCEITO ABSTRATO *
Por Suely Salgueiro Chacon
O ritmo das máquinas aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida , mas não mudaria – apenas tornaria mais destruidora – a principal característica da vida em relação ao mundo, que é a de minar a durabilidade - Hannah Arendt (A condição humana)
O artigo analisa a construção da idéia de modernidade e como esta pode ser usada pelo poder político que preconiza as ações que direcionam as decisões de uma sociedade . É explicada a formação da sociedade moderna e o papel do Estado. A seguir é esclarecido o real significado de modernidade em relação ao tempo e à organização social, mostrando como o Estado é capturado pelo poder político e passa a interferir diretamente nessa organização social, na apropriação do meio ambiente (espaço de convivência) e na geração da exclusão social.
A SOCIEDADE MODERNA
A sociedade moderna , historicamente definida , foi gestada nos séculos XVIII e XIX, e tem como características essenciais : a constituição e centralidade do indivíduo ; a transformação dessa centralidade em uma norma única e universal ; a instituição do poder como um lugar e não mais centrado em uma pessoa , família ou grupo social (o poder torna-se impessoal ), e a detenção do poder político é resultante do processo de escolha realizada pelos membros da comunidade política (da qual ninguém é excluído ); é uma sociedade aberta , de mobilidade social ; suas organizações , práticas e valores , são regidos pela racionalidade (que troca o saber divino pelo saber laico , da ciência ); ignora a exterioridade , desconhece fronteiras ; não se confunde com os Estados-nação, simples instrumento de sua realização ; sua base econômica é essencialmente universal , o capitalismo . E é nesse tipo de sociedade que surgem os mecanismos de resolução de conflitos. (NASCIMENTO, 2001a: 87-88)
Nascimento (2001) ressalta que as sociedades primitivas não conheciam o conflito assim como a sociedade moderna o vê , muito menos dispunham de mecanismos de resolução para os mesmos . Se surgisse uma disputa ou divergência só existiam dois meios de superação : a força bruta , pela qual vencia o mais forte , ou a cisma , quando os grupos se separavam pelo desentendimento . Isso manteve aquelas sociedades fracas, pequenas e sempre em fragmentação , até que surgisse um povo , ou um líder mais forte que subjugasse muitas dessas sociedades , formando impérios .
A resolução e a mediação dos conflitos só vai acontecer de fato com o advento do Estado , ainda na Antigüidade. Também o aparecimento das primeiras noções de leis e direito contribui para isso . Porém , ainda é a força ou a opinião dos líderes que prevalece decisivamente , mesmo nas negociações, e mesmo quando já existiam normas e regras estas eram constantemente ignoradas. Somente com a sociedade moderna passam a existir condições de negociação real e contínua , buscando-se então soluções mais pacíficas e consensuais para a resolução dos conflitos .
O grau de complexidade adquirido pelos conflitos é uma característica das sociedades modernas. Se antes os conflitos explodiam em disputas definitivas e visíveis a todos , a partir da modernidade, do domínio da razão e das leis , e da centralidade do indivíduo , os conflitos são contidos, internalizados, normatizados e institucionalizados, tornando-se invisíveis para quem não os quer ver.
Nesse sentido, o conflito é a matéria-prima da política , que manipula os mecanismos necessários para a contenção da luta .
Os conflitos são meios pelos quais os atores sociais dirimem suas divergências , interesses antagônicos ou pontos de vista conflitantes, possibilitando que a sociedade alcance certa unidade . Os conflitos são fatores de coesão social , e não de distúrbio . (NASCIMENTO, 2001:94).
ESTADO E MODERNIDADE
Ao identificar a regulação, mediação e resolução institucionalizada dos conflitos com a modernidade, Nascimento (2001) ajuda a reforçar a percepção de que o Estado está no cerne da questão da modernização, independente do grupo que ocupa o poder e mesmo do tempo e do espaço em que ocorre esse movimento .
Estabeleceu-se um círculo virtuoso entre o princípio do Estado e o princípio do mercado de que ambos saíram reforçados, enquanto o princípio da comunidade , assente na obrigação política horizontal cidadão a cidadão , foi totalmente descaracterizado na medida em que o reconhecimento político da cooperação e a solidariedade entre cidadãos foram restringidos às formas de cooperação e de solidariedade mediadas pelo Estado . Nesta nova articulação regulatória, o potencial caótico do mercado , que se manifestava sob a forma da questão social – anomia, exclusão social , desagregação familiar , violência –, é mantido sob controle na medida em que a questão social entra na agenda política pela mão da democracia e da cidadania . Politizar a questão social significou submetê-la a critérios não capitalistas , não para a eliminar , mas tão só para a minorar e, nessa medida , manter sob controle o capitalismo enquanto conseqüência (a questão social ) significou legitimá-lo enquanto causa . (SANTOS , 1998:1-2)
O reformismo defendia que a origem dos problemas a serem superados era a própria sociedade , que então deveria ser o objeto da reforma, enquanto o Estado era a solução e, portanto , o sujeito da reforma.
Nesse contexto, o mercado surge como o ente regulador das relações produtivas e mesmo sociais, substituindo em grande parte o Estado. Essa premissa se fortalece a partir da ruptura real ocorrida com o advento dessa sociedade moderna , que tem como base as idéias do iluminismo e do liberalismo econômico. O capitalismo se torna o modo de produção principal da sociedade ocidental e vai se fortalecer ao longo do tempo , provocando uma série de conseqüências , como a urbanização e o avanço tecnológico , que modificam para sempre a forma de se relacionar do ser humano .
Mas, a continuidade do processo levou ao retorno do Estado como parceiro do mercado , e o primeiro continua como protagonista das grandes decisões . Isto significa que não se pode ignorar o papel do Estado no entendimento das motivações que levam a um movimento de mudança da sociedade .
Dessa forma é que a sociedade moderna está “oficialmente” posta, mas na verdade a modernidade se reproduz ao longo de um processo que se renova, conforme o momento histórico e conforme as forças no poder preconizem ou não uma mudança .
A MODERNIDADE E O TEMPO
A idéia de tempo , que passa despercebida nos debates cotidianos é a chave para entender o real significado da modernidade. O tempo presente é o tempo da modernidade (BARTHOLO JR., 2001). Com base na interpretação de Bartholo Jr., a modernidade pode ser vista como uma atitude e não apenas como um momento histórico . Assim , é possível identificar modernidade em diferentes etapas da história de uma sociedade , pois :
O movimento de modernização começa a acontecer quando uma parcela significativa de um grupo põe em prática uma atitude crítica , que questiona o que está posto até então . Ou seja, a modernidade se instaura quando os valores e a organização cultural e social são questionados e se gestam novos valores , que se contrapõem aos antigos . Assim , é preciso identificar o que caracteriza o tradicional, para que se perceba o que significa a modernidade em um dado momento .
A modernidade pode ser encontrada em fases históricas distintas. Portanto, se a concretização relativa da modernidade ocorre em diferentes momentos da história , cada momento é um tempo presente de realização da modernidade, conforme o sentido que esta incorpora em confronto com o que deve ser superado, identificado normalmente como o tradicional.
Assim, a idéia de modernidade inspira o imaginário das sociedades de diferentes modos , conforme sua formação histórica , mas comumente o moderno é identificado de forma dicotômica , como o oposto do tradicional, a superação do atraso , a inserção no mundo tecnológico . Usar os termos conceituais modernidade ou moderno passou a ser algo comum no discurso cotidiano das pessoas em geral, de empresários e principalmente dos políticos . Promover a modernidade vem sendo a ordem do dia já por várias décadas , e o fato de que essa modernidade vem se modificando ao longo do tempo tem passado despercebido . O moderno é posto por quem o defende como o contrário de algo velho , superado. Dicotomicamente, o moderno é bom e o tradicional é ruim .
UM EXEMPLO: MODERNIDADE E POLÍTICA NO BRASIL E NO SERTÃO DO CEARÁ
Para Buarque (1991:31), “na civilização ocidental , a história de cada país tem sido a história das mudanças necessárias à construção de sua modernidade”. E no Brasil não foi diferente , contudo não aconteceram de fato grandes rupturas na nossa história . Na verdade o que é comum é uma mudança na “metodologia política ”, sem que haja uma mudança real na sociedade . Os momentos de modernização da sociedade brasileira são identificados por Buarque (1991) com momentos de crise , ressaltando que no Brasil se repete o movimento de modernização arcaica .
Nas últimas décadas do século XX, um movimento global de mudança , fortemente ligado à idéia de liberalização econômica , foi capitaneado pelo boom tecnológico que tornou o acesso à informação e o rompimento virtual das fronteiras geográficas e culturais os ícones desse novo processo de modernização.
Nesse sentido , o papel do Estado foi mais uma vez questionado e representado como um atraso quando intervinha nos processos econômicos e impedia a livre iniciativa . Foi forjado todo um arcabouço teórico pelo neoliberalismo , para justificar essa posição e dar mais poder à iniciativa privada . Esse é um movimento claro de superação de posições tradicionais, mas não é necessariamente um movimento saudável que possa ser generalizado. Nem definitivo . Dessa forma , outro ponto a ser atentado , quando se fala de modernização, é que nem sempre este é um movimento unânime e muito menos legítimo .
Ao estudar o Sertão do Ceará (CHACON, 2007) percebi que seus habitantes seguem submetidos a um estado de coisas em que a política (no sentido de politics) e a política (no sentido de polícy) se entrelaçam de forma promíscua.
O Estado é capturado e as políticas públicas ao invés de modernizarem, servem para manter o que de mais perverso tem na tradição da região: o clientelismo. Ao desprezar aspectos como a cultura, a prática do discurso da sustentabilidade tem mostrado a falácia da preponderância da dimensão econômica de mercado. Esta é apenas uma das faces do desenvolvimento sustentável, que deve considerar também as dimensões social, ambiental e institucional.
Na medida em que essas políticas não respeitam o lugar e as pessoas, não colocando estas como seu foco central, também não conseguem se traduzir em melhorias para vida neste lugar. E, além disso, quando as políticas não se mostram sintonizadas com a cultura do local e são determinadas por pensamentos e interesses exógenos, resultam em fracasso e, mais que isso, contribuem para a desmobilização desta sociedade.
O sertanejo protagoniza um processo cada vez mais intenso de migração, por não encontrar no Sertão a motivação para permanecer. Não experimenta a sensação de pertencimento.
A “modernidade” dos discursos políticos não significa melhoria na qualidade de vida, enquanto a “modernidade” trazida pelas inúmeras parabólicas o remete sem cuidado para um mundo urbano que enfeitiça no início para desiludir no dia-a-dia perverso das periferias das grandes cidades.
Essas reflexões remetem a um problema que é exacerbado e ao mesmo tempo justificado pela modernidade em todo mundo : o aumento da exclusão social , da miséria , da fome e da violência. É o resultado da intensa urbanização, da falta de planejamento desse processo e principalmente do desaparecimento gradual do cuidado pelo outro , pelos semelhantes, substituído pelo individualismo e pela competição, tônicas do mundo “moderno”. E para além da exclusão, a sociedade começa a produzir os “desnecessários”, seres que não conseguem nem mesmo sobreviver perifericamente no sistema produtivo vigente e “desaparecem” das estatísticas. O que vamos fazer para mudar essa tendência?
BIBLIOGRAFIA
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BARTHOLO JR., Roberto S. “A mais moderna das esfinges : notas sobre ética e desenvolvimento ”. In: BURSZTYN, Marcel (org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro : Garamond, 2001. (Coleção Terra Mater)
BUARQUE, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira e uma proposta alternativa . Rio de Janeiro : Paz e Terra , 1991.
CHACON, Suely Salgueiro. O Sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido. Fortaleza: BNB, 200. Série Teses e Dissertações. Vol. 8.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
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NASCIMENTO, Elimar. “Educação e desenvolvimento na contemporaneidade”. In: BURSZTYN, Marcel (org.) Ciência , ética e sustentabilidade: desafios ao novo século . São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2001a.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “A reinvenção solidária e participativa do Estado ”. Anais do Seminário Internacional Sociedade e a Reforma do Estado . São Paulo: MARE, 26-28 de março de 1998.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade . Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia . das Letras , 2000.
* Este artigo foi originalmente publicado na minha Coluna do site do Conselho Federal de Economia - COFECON (http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1015&Itemid=103), em 10-09-07. Foi reproduzido depois em vários sites, dentre eles o da Revista Fator Brasil (http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=19291)
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