sábado, 16 de janeiro de 2010

Literatura e Semiárido

Artigo publicado na edição nº 38 de novembro de 2009 da Revista Histórica, do Governo do estado de São Paulo.

O tempo e a cultura da natureza: uma análise das sensibilidades dos escritores regionais em relação ao semiárido do Nordeste brasileiro

Catarina de Oliveira Buriti
José Otávio Aguiar

Objetiva-se neste trabalho analisar de que forma os referenciais naturais/climáticos e sociais/históricos influenciaram as narrativas de Raquel de Queiroz na obra O quinze (1930) e de Graciliano Ramos em Vidas secas (1938), escritores ligados à literatura regional do Semiárido. O enfoque será dado, particularmente, às sensibilidades desses literatos em relação aos fatores naturais e climáticos configurados artística e esteticamente nessas fontes sob a forma de um tempo cíclico da natureza forçosamente vivenciado pelas populações da região.

Para realizar a leitura dessas obras, considerar-se-á a proposta de Paul Ricouer de que há o cruzamento entre a ficção e a história através do uso de traços do imaginário no ato de composição desses enredos. Essa relação ocorre por intermédio da operação de humanização do tempo na narrativa, o que o filósofo denomina refiguração. Nessa perspectiva, a história reclama, de algum modo, a ficção quando se utiliza da imaginação para preencher as lacunas deixadas pelos rastros ou para interpretar os vestígios que toma como fonte, mesmo que esse uso seja feito a serviço de seu intento de representância do passado, ocorrendo a ficcionalização da história; enquanto, por outro lado, de forma similar, a ficção se vale da história com o objetivo de construir a sua trama e de humanizar o tempo narrado, historicizando a ficção[*1] (RICOUER, 1997).

A escolha da literatura justifica-se porque esta vem se constituindo como uma fonte cada vez mais recorrente por parte de historiadores(as) preocupados(as) em investigar o reduto das sensibilidades historicamente situadas em um contexto sociocultural específico. Contudo, é importante advertir, de antemão, que se o historiador recorrer à literatura com o intuito de identificar se os personagens daquela trama realmente existiram ou se algo teria ocorrido de fato, não é a esse tipo de fonte que deve recorrer. Já para o historiador que busca atingir as sensibilidades e as significações instituídas pelas sociedades em uma determinada época ou repensar as representações do mundo no passado, a literatura se presta como uma fonte especial que pode permitir inclusive que o historiador encontre vestígios que outras fontes não lhe fornecerão (PESAVENTO, 2005).

No caso deste trabalho, pretende-se repensar as sensibilidades historicamente constituídas pelas sociedades do Semiárido brasileiro em relação ao ambiente que as circunda, considerando que não obstante a natureza impor restrições à permanência da vida do sertanejo naquele espaço, ele luta para permanecer naquele lugar mesmo diante das adversidades como escassez relativa de água, falta de alimentos, mandonismo político, corrupção, desvios de recursos voltados para permitir o convívio com a seca, etc. Assim, pode-se afirmar que essa continuidade da vida social no Semiárido torna-se possível através de certo grau de topofilia, ou seja, de um elo afetivo que vincula o homem do Semiárido àquele lugar e que o leva a buscar novas alternativas de sobrevivência quando a agricultura e a pecuária não são possíveis em decorrência das estiagens, e quando os governos não implementam políticas públicas que propiciem a convivência com as características naturais/climáticas da região[*2] (MARIANO NETO, 2001).

O Semiárido brasileiro, como toda região geográfica, caracteriza-se pela influência de uma série de fatores naturais, entre os quais se sobressaem os domínios físicos – estrutura geológica, relevo, clima e hidrografia – o meio biológico – vegetação e fauna – e a organização dada ao espaço pelo homem. Sabe-se, contudo, que não obstante as paisagens naturais e culturais resultarem do entrelaçamento e da influência mútua entre esses fatores, de modo que não há exclusividade da ação de nenhum deles na configuração das paisagens geográficas, a tendência é que uma dessas características ambientais se destaque no mosaico paisagístico regional. No caso do Nordeste, o elemento que marca mais sensivelmente a paisagem e a vida do homem é o clima, através do regime pluvial quente-seco exteriorizado pela vegetação natural (ANDRADE, 1973).

A história do Semiárido é marcada por períodos chuvosos alternados com a ocorrência de secas que, em geral, tendiam a se prolongar por uma sequência de anos. Nos anos 1930, embrenhados no domínio da caatinga, nos períodos de estiagens, os personagens que povoavam esse espaço tinham que garantir a sua sobrevivência convivendo com uma característica peculiar a todas as regiões semiáridas do mundo: a variabilidade climática. Em alguns anos, as chuvas chegavam no tempo esperado e até com intensidade pluviométrica superior à média esperada. No entanto, na sequência dos anos, essas precipitações chegavam com atrasos ou simplesmente não atingiam aquelas plagas, modificando a vida na região. Tais irregularidades naturais periódicas interferiam significativamente nessa sociedade, deixando vir à tona uma realidade, que até então se tentava escamotear, de falta de investimentos em projetos de desenvolvimento efetivo e de convivência com a realidade natural do Semiárido (GOMES, 2001).

Nos períodos de estiagens prolongadas, era comum a fuga de famílias em busca de “um lugar menos seco”. Conforme a trama de Graciliano, depois de vivenciar um período de inverno com relativa estabilidade, Fabiano sentia de longe que a seca se aproximava e apesar de saber perfeitamente que era necessário mudar-se com a família, “[...] agarrou-se a esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse, talvez chovesse.” Todavia, um conjunto de imagens muito bem delineadas em sua memória fazia com que ele experimentasse “[...] adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das retiradas.” E sentisse pela vulnerabilidade da vida nos sertões, pois há poucos dias, nos alegres tempos de inverno, “[...] estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas.” De repente, “[...] olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as suspeitas.” (RAMOS, 1979, p. 62).

Através dessa obra, observa-se que os problemas sociais e econômicos da região são naturalizados, atribuídos pelos literatos exclusivamente ao clima e à natureza, enquanto as querelas políticas, os esforços de manutenção no poder por parte dos grupos oligárquicos e os resquícios de coronelato ainda vigentes que impediam o desenvolvimento da região não são mencionados nessa obra como sendo os responsáveis pelo “sofrimento”, o “cansaço”, a “sede” e a “fome” do sertanejo. Sabe-se que essa é uma região seca, que possui especificidades, mas que também apresenta potencialidades de desenvolvimento sustentável, desde que haja políticas de valorização de toda uma cultura que desenvolveu em interação com esse espaço (CHACON, 2007).

Os enredos tomados como fonte para esta pesquisa lançam luz, singularmente, sobre a instabilidade da vida das populações do Semiárido, justamente porque além de, desde o início do Império e, sobretudo, na década de 1930, as atenções e os investimentos do governo estivessem voltados para a cultura cafeeira, durante toda a história do Sertão nordestino, os projetos de desenvolvimento – em geral, emergenciais – foram implementados verticalmente, sem valorizar o potencial que essas populações construíram historicamente para conviver com a condição natural de seca. Em virtude das condições socioeconômicas da região, passíveis de planejamento político, governamental ou não, que atentasse para as peculiaridades climáticas desse espaço, o cotidiano dos sertanejos oscilava ora entre os momentos de entusiasmo com o inverno, quando a natureza rapidamente florescia e os sertanejos tentavam afastar as “amargas” lembranças da seca no passado, ora diante do temor de que ela voltasse em um futuro próximo. Quando isso ocorria, a “fuga” aparecia no horizonte desses(as) moradores(as) como a alternativa mais viável. Diante da ausência de alternativas que propiciassem uma convivência mais harmoniosa com essa singularidade natural, o cotidiano das populações da região acompanhava, forçosamente, o tempo cíclico da natureza.

Essa é também a característica do cotidiano da família de Chico Bento, o vaqueiro da Dona Maroca que povoa as páginas de Raquel de Queiroz. Desiludida com o inverno que em pleno mês de março ainda não tinha chegado, já tendo migrado para a cidade, a fazendeira das Aroeiras “[...] deu ordens prá, se não chover até o dia de São José, abrir as porteiras do curral. E o pessoal dela que ganhe o mundo... Não tem mais serviço pra ninguém.” Chico Bento relutava em deixar a sua terra. Juntando os fiapos de esperança que lhe restava, “esperou ainda uma semana” para cumprir a “sentença” e partir em retirada com a família: “— Me esperancei que inda chovesse depois do São José... Mas qual!” (QUEIROZ, 1979, p. 13).

Em ambas as narrativas, tratam-se de famílias que deixavam a região do Semiárido embriagadas pelo sonho de encontrar essa “terra desconhecida e civilizada” (RAMOS, 1979, p. 71). Sabe-se que embora remonte a fins do século XIX, a migração de sertanejos(as) para outras regiões do país intensificou-se a partir da década de 1930, notadamente, em direção aos grandes centros urbanos do Sul[*3].

Feitas essas considerações, começo a minha análise com base no que considero desencadeador da problemática tomada para efeito desse estudo: de que cotidiano os atores e as atrizes sociais do Semiárido fugiam? Por que a causa dessas fugas, em geral, é atribuída às secas? Qual era realmente a causa da migração dos personagens do Semiárido para outras regiões do País?

Não obstante o clima peculiar ao Semiárido ter sido em geral responsabilizado pelos principais problemas sociais vivenciados nessa região, sendo a migração inter-regional um deles, a Natureza atuou como o argumento mais convincente que as elites políticas e os grupos intelectuais que as representavam encontraram para escamotear a falta de gestão e de políticas de desenvolvimento humano nesse espaço. Por isso, o estudo das inter-relações históricas da sociedade com o ambiente semiárido do Nordeste requer uma leitura crítica que proporcione ao leitor os subsídios necessários à identificação do cenário histórico brasileiro e do imaginário social que perpassou a interação dessa sociedade com o meio que a circunda, desnaturalizando as causas de problemas comumente atribuídas ao clima semiárido.

Nos últimos decênios do século XIX, com a decadência da cultura agroexportadora de açúcar e algodão da região Norte do país, atual Nordeste, e com a importância crescente da economia cafeeira do Sul, os letrados e/ou representantes políticos das províncias, como forma de sensibilizar as bancadas parlamentares a conceder recursos para aquela região, sedimentaram no imaginário social a ideia de uma região identificada com o “sofrimento” e com a “miséria” por ocasião de suas características naturais, notadamente climáticas. Nesse cenário, a seca atuou como a principal protagonista na trama desses discursos instituintes (ARANHA, 2006, p. 91).

Nas primeiras décadas da República, as reivindicações dos governadores dos estados para solucionar o “problema” da seca eram ignoradas pelos presidentes do Brasil que se alternavam no poder e não faziam parte das discussões e dos projetos parlamentares, que priorizavam manter em funcionamento as fazendas destinadas à cultura do café, o que fez com que os argumentos se tornassem cada vez mais insistentes e persuasivos, teatralizando a realidade do Semiárido com a utilização de apelos incisivos que comovessem e que sensibilizassem as bancadas (VILLA, 2000, p. 39). Ora, quem seria o parlamentar, representante do “povo”, que não se comoveria com o “sofrimento” e a “miséria” dos seus “irmãos” do Nordeste e ousaria recusar-se a prestar-lhe o necessário “socorro”? Sabe-se, no entanto, que, na prática, não era bem para o povo que “os socorros” viriam, mas diretamente para os bolsos daquelas reminiscências de coronéis decadentes!

Essas elites política, econômica e cultural do Nordeste e/ou seus representantes no parlamento e na imprensa, com vistas em se manter no poder, instituíram estrategicamente a ideia de uma natureza “adversa”, “hostil”, “inóspita”, “imutável”, que provocaria secas “pavorosas”, onde só havia “destruição”, “fome”, “atraso”, “lamúria”, etc. Afirmando-se preocupadas com a “miséria” da população, o que esses grupos do poder buscavam, na realidade, era reivindicar a aquisição de equipamentos modernos para a região, solução para o “problema” da seca, com a finalidade de auferir recursos e garantir a sua manutenção no poder (ARANHA, 2006).

Embora essa característica ambiental acompanhasse a história da região do Semiárido desde os períodos coloniais[*4], foi somente nesse momento de crise, notadamente, a partir da grande seca de 1977-1979, que os grupos dominantes nesse espaço descobriram nesse fenômeno natural um valioso argumento para obter verbas em nome da população “flagelada” da região. Iniciava-se um longo processo de vitimização dessa sociedade, de homogeneização do seu ambiente natural e de fabricação de estereótipos até hoje persistem no imaginário do país. Estavam sendo gestados os arranjos sociais e políticos do que mais tarde ficaria conhecida como a “indústria das secas”.

Tanto na narrativa da fuga da família de Fabiano em Vidas secas quanto de Chico Bento em O quinze desenreda-se a naturalização das causas que impulsionavam a migração dos habitantes do Semiárido em busca de outras cartografias da região ou do país. Conforme abordamos, era prática comum, desde o século XIX, atribuir a causa dos principais problemas sociais e econômicos desse espaço às suas peculiaridades climáticas. A noção de que a natureza da região era a principal responsável pelo atraso do Nordeste marcou profundamente o imaginário regional e nacional, revelando-se uma forma de percepção na qual o determinismo geográfico estava implícito. Nessa perspectiva, a seca deixava de ser vista como um fenômeno natural representado pela estiagem prolongada e tornava-se o símbolo identificador do Nordeste e de todos os problemas que são peculiares a uma natureza “hostil”, entre os quais: miséria aguda, surtos epidêmicos, fome, analfabetismo, enorme migração, choro, desespero, etc. (NEVES, 1994).

Para além de naturalizar as condições de sobrevivência no interior dos sertões, é necessário lembrar que esses(as) sertanejos(as) eram ainda submetidos aos tradicionais esquemas de mandos político e econômico locais, em que os mananciais hídricos e as terras cultiváveis eram monopolizados pelos grandes latifundiários de pecuária extensiva ou de lavouras de produtos com alta demanda no mercado (NEVES, 1994).

Não obstante o conjunto de “mitos” e “lugares comuns” que tem sido elaborado e cristalizado para designar as características naturais da caatinga[*5], que, em geral, tende a homogeneizar e subordinar o potencial da sua biodiversidade, especialistas em Botânica têm demonstrado que essa é uma das 37 grandes regiões geográficas do planeta, sendo a vegetação mais heterogênea dentre os biomas brasileiros. Apesar de serem reconhecidas hoje 12 tipologias diferentes de Caatinga, esse bioma é considerado um dos menos conhecidos do Brasil, razão porque sua diversidade biológica tem sido subestimada (ANDRADE, 2007).

Nesse cenário, os literatos do Semiárido, utilizando-se de um conjunto de metáforas e de códigos culturais típicos da região, atuaram como mediadores entre essas irregularidades climáticas e outras características naturais presentes no cotidiano dos sertanejos, (re)significando no domínio ficcional as experiências instituídas social e historicamente pelos habitantes dessa região.

Apesar das tentativas de homogeneização do ambiente do Nordeste através de certos discursos instituintes desse espaço, seja no campo das artes, seja no dos discursos políticos, sabe-se que a característica ambiental marcante do Semiárido é a ocorrência de períodos chuvosos alternados com secas, que em determinadas épocas tendem a se prolongar por uma sequência de anos. Tal particularidade da vida na região nos leva a contrapor-nos a essas imagens estereotipadas e consagradas que dramatizam a realidade como se nesse espaço só existisse seca. Tais imagens estão presentes inclusive na historiografia que lê esses discursos de forma homogênea e não atenta às peculiaridades das obras literárias em relação à percepção do Semiárido.

É o caso do texto de Durval. Quando esse autor afirma que as imagens e os estereótipos cristalizados nas outras regiões do Brasil e no próprio Nordeste a respeito desse espaço através da literatura, da música, da pintura, do cinema, da imprensa e do discurso de suas elites políticas instauraram uma dada forma de ver os nordestinos (retirante, cangaceiro, flagelado, jagunço, coronel, etc.) e a natureza do Nordeste (seca, cacto, caveira, etc.), (DURVAL, 2007), ele não considera as peculiaridades artísticas comuns a cada uma dessas obras. Trata-as de forma generalizada, notadamente em se tratando da literatura regional, como se essa pudesse ser considerada em um bloco único com características semelhantes.

Sabe-se que a estereotipação regional é notória e marcou profundamente a história do Semiárido e que o autor em análise é um dos que visam combater o preconceito elaborado e reforçado sobre essa região. Contudo, em se tratando do papel da literatura nessa “invenção”, faz-se necessário uma autocrítica por parte do pesquisador para que não homogeneizemos o olhar que cada escritor lança em relação ao ambiente semiárido, que em determinados momentos não consistiu necessariamente em estereotipar/homogeneizar.

A literatura enfatiza a seca e a miséria do sertanejo como consequência do clima “adverso”, naturalizando os problemas das sociedades que se desenvolveram em interação com esse espaço. No entanto, é necessário compreender que a natureza do Semiárido, marcada por estações climáticas pouco definidas e irregulares, apresenta momentos de seca, que pode se estender ao longo de anos, mas também de inverno, o que leva a vida do sertanejo a acompanhar esse ciclo natural, não dispondo de alternativas econômicas que não sejam predominantemente a pecuária e a agricultura, dependentes do regime anual de chuvas.

Apesar de a Caatinga ser considerada o único bioma exclusivamente brasileiro, o que significa que grande parte do seu patrimônio biológico não pode ser encontrado em outros ecossistemas do planeta, ela recebe uma importância secundária no cenário ecológico nacional. Assim como o Cerrado, a Caatinga também foi considerada como um bioma de segunda categoria, apesar de sua importância para o contexto ecológico brasileiro e da América do Sul. Essa percepção a respeito de ambos os ecossistemas pode ser constatada através da leitura da Constituição de 1988, em que essas duas regiões não foram incluídas como parte do patrimônio nacional, tal como foram a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o Pantanal Mato-Grossense, a Mata das Araucárias e outros, ignorando-se, assim, um amplo patrimônio cultural de convivência e uso desses biomas acumulado historicamente pelos grupos sociais que se desenvolveram em seu entorno. Camponeses, assim como grupos indígenas, construíram, em torno do ambiente natural, práticas, experiências, saberes, representações simbólicas, sentimentos topofílicos que os unem ao lugar, diferentemente de outras populações que se apropriam desses ecossistemas. Da mesma forma como o Cerrado é tido como uma mata “raquítica”, que não se desenvolveu, durante muito tempo se acreditou que a Caatinga seria o resultado da degradação de formações vegetais mais exuberantes como a Mata Atlântica ou a Floresta Amazônica (RIBEIRO, 2005, p. 53).

Tais concepções levaram a representações equivocadas no pensamento social e no imaginário brasileiro, que passaram a considerar esse bioma como homogêneo, com biota pobre em espécies e em endemismos, com um ambiente estático, imutável, tendo sido pouco alterado ou ameaçado desde o início da ocupação desse espaço. Entretanto, compilações e interpretações botânicas e paleoclimatológicas recentes apontam a Caatinga como rica em sociobiodiversidade e endemismos e bastante heterogênea, de modo que esse espaço, compreendido como resultado da interação do homem sertanejo com o seu ambiente, possui outras conotações diferentes das que a literatura artística e até mesmo a histórica reduziram o potencial da cultura sertaneja que se desenvolveu ao longo do tempo em um peculiar processo de interação com o meio.

Depreende-se, com base no exposto, que é necessário problematizar as representações que têm sido elaboradas a respeito do semiárido do Nordeste, especialmente quando se trata da literatura que foi alvo de uma elite interessada que buscava solidificar certas imagens desfiguradas do Nordeste. Mais que isso, constatamos, com base nesta pesquisa, que as fontes literárias se constituem em uma importante fonte para o historiador do meio ambiente, no entanto, deve-se atentar para as especificidades artísticas de cada uma dessas obras, não generalizando um conjunto de escritores, mas buscando perceber a singularidade do ambiente construído por cada um deles e em cada uma de suas obras.

Referências Bibliográficas

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MARIANO NETO, Belarmino. Ecologia e imaginário: memória cultural, natureza e submundialização. João Pessoa: Ed. Universitário/UFPB, 2001.
NEVES, Frederico de Castro. Imagens do Nordeste: a construção da memória regional. Fortaleza: SECULT, 1994. (Coleção Teses Cearenses).
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & história cultural. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. (Coleção história &... Reflexões, 5).
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RIBEIRO, Ricardo Ferreira. Florestas anãs do sertão: o cerrado na história de Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
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Fonte: Revista Histórica

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