segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ceará - Adivinhas da chuva

17/1/2010

UMA TEM 72 ANOS, A OUTRA, 14. EMBORA DE GERAÇÕES DIFERENTES, COMUNGAM DO MESMO CREDO QUANDO, POR MEIO DE INSTRUMENTOS DA NATUREZA, ANUNCIAM COMO SERÁ O INVERNO

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Lourdes Leite, 72 anos, é a única mulher com direito à voz no Encontro Anual dos Profetas da Chuva. Já a adolescente Catarina Silva, 14, segue os passos do pai, profeta Antônio Lima

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A natureza oferece aos profetas da chuva, como dona Lourdes, os indícios de um inverno promissor ou de uma estiagem rigorosa

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Lourdes em frente ao sombreão todo florido, um sinal, segundo ela, de que o inverno de 2010 será bom . Acima, detalhe da flor


No frechal da cozinha, uma pequena tábua de madeira espera até a manhã seguinte pelo olhar atento de dona Lourdes Leite, 72 anos. É 14 de dezembro, um dia após a data reservada a Santa Luzia, e lá está a profetisa a adivinhar a sorte das chuvas para 2010.


Passadas algumas semanas após as indicações da tábua de madeira, a professora aposentada avalia: "Nas minhas previsões, o inverno já começou. Aqui, tem chovido desde o dia 31, tô é com medo, penso que vai ser forte. Teve uma chuva que achei até que era pedra de gelo".

Lourdes mora no bairro Campo Velho, em Quixadá. Ela é a única mulher com direito à voz no tradicional Encontro dos Profetas da Chuva, que acontece, anualmente, no segundo sábado de janeiro.

Sal grosso

Ela orgulha-se do instrumento com o qual prevê o destino de muita gente, principalmente dos agricultores. O sal grosso, colocado sobre os pontinhos correspondentes aos meses do ano, "chora", como se diz.

Sentada em sua receptiva sala, Lourdes anuncia os resultados da experiência: "Todos os meses molharam, mas é pra maio que vem mais chuva. Escrevi até junho, porque esse ano o inverno será mais curto".

Se os homens estão satisfeitos com a existência de uma profetisa? "Acho que ficam meio de orelha em pé: olhe essa mulher nos desafiando!", brinca a alegre senhora, que faz piada de tudo, até da recente cirurgia de catarata que lhe fez enxergar melhor os moços bonitos. Sobre o universo masculino, aliás, ela tem muito o que dizer.

Gerou seis meninos, embora nunca perdesse a esperança de ganhar uma mulher. O sonho acabou se realizando, pois criou Maria do Socorro, hoje, residente em São Paulo, mas que sempre está em contato com Lourdes. Contudo, é no filho Emanuel Lucindo Júnior em quem mais aposta na hora de indicar um sucessor. "Ele é formado em história. Fez uma monografia sobre os profetas da chuva. Eu digo que vai assumir meu posto, e ele só faz achar graça".

O talento para adivinhação, no entanto, não é mera coincidência na vida dela. O pai, o agricultor Francisco Leite, foi, conforme Lourdes, o primeiro profeta do Ceará. O irmão, de mesmo nome, é hoje respeitado pelas previsões e também participa do evento. "Minha mãe dizia para eu não tomar a frente dele, mas eu sempre tive vontade de participar do encontro. Foi aí que, em 2007, comecei a anunciar. Todos os anos, faço a abertura e rezo", conta.

Lourdes, a mais velha dos nove filhos, aprendeu a ler aos cinco anos e tornou-se o xodó do pai, analfabeto, que se apegava à menina na hora de ouvir alguma carta ou romance. Companhia certa de seu Francisco, foi com ele que aprendeu a decifrar a natureza. Lua nublada, como se estivesse rodeada por uma lagoa; estrela d´alva mudando de lugar cedo; sombreão bem florado; e até as formigas que tanto lhe incomodavam na roça - onde passou a trabalhar ao lado do pai aos 12 anos - são sinais de bom inverno.

No sertão de Banabuiú, além de ensinar, continuou fazendo suas previsões, mas o marido não acreditava muito nelas. "Em 64, eu falei: ´Emanuel, não plante na vazante´. Ele não obedeceu, daí a chuva carregou tudo. Só fiz ´mangar´. Já meu sogro confiava em mim".

Aposentada como professora, mas em plena atividade com as previsões, confidencia: "Meu sonho agora é ver meu livro impresso e publicado: ´A professorinha da zona rural´ e ter um fusca rosa".

Firme, a profetisa fala sobre tudo, sem papas na língua. "Perguntei uma vez à Funceme porque eles dizem que é frente fria e não inverno. Deram uma explicação que eu não entendi nada e nunca mais voltaram", orgulha-se. E assim anuncia mais uma vez até a própria sorte. Embora católica e devota de Santa Luzia, acredita ainda em astrologia. "Sou do signo de peixes, gosto muito de nadar, morrer no seco, não".

CURIOSIDADES

Com 15 anos, Lourdes descobriu o talento para o ensino e passou a se dedicar aos seus alunos. "Ensinava de criança a rapagão. Até à noite, dava aula em minha casa"

Aos 23, depois de ter passado por três noivados, porque o pai não queria "perder" a filha, casou-se finalmente com o agricultor Emanuel Lucindo. "Eu não tinha vocação pra casamento, mas também não queria mais ser chamada de vitalina"

Aprendeu a botar cartas, mas viu seu sonho de prever o futuro ir por água abaixo, literalmente. "O Emanuel ficou dizendo que aquilo era macumba e jogou tudo no rio". A insistência de dona Lourdes, aliás, era coisa que o marido custava a aceitar. "Vim embora pra Quixadá e só seis meses depois ele veio. Se eu deixasse meus meninos lá, só iam trabalhar na enxada, casar novinho e não iam aprender nada, porque era eu quem os ensinava"

Na volta para Quixadá, passou no supletivo, terminou o 2° grau e seguiu dando aulas, apesar da advertência do marido de Emanuel de que ela não iria dar conta de tudo. "Eu fui quem sustentei a casa sempre. Há 11 anos, ele morreu de leucemia. Bebia muito", conta, enquanto lembra também que o marido nunca lhe encostou um dedo, era bom homem. Hoje, Lourdes adora dançar e participa do conselho de idosos.

SÍRIA MAPURUNGA
ENVIADA A QUIXADÁ

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=719956

Fonte: Jornal Diário do Nordeste. Caderno Eva. Fortaleza, 17 de janeiro de 2010.

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