terça-feira, 13 de julho de 2010

O sertão está em todo lugar

MÚSICA
13/7/2010 Clique para Ampliar
Cristiano Pinho: segundo trabalho solo passeia por imagens do sertão e pelos diversos ritmos que fazem parte da formação musical do guitarrista cearense 
DIVULGAÇÃO/LARISSA FREITAS
Segundo disco solo do guitarrista Cristiano Pinho, "Cortejo" é um bordado em que se costuram memórias visuais e musicais

Se fosse um livro, "Cortejo" seria definido como romance de formação. Certamente, é o mais próximo que disso se pode chegar se valendo de outra linguagem, a música. Segundo trabalho solo de Cristiano Pinho, guitarrista experiente conhecido por suas parcerias com os "highlights" da música cearense, o álbum é carregado de imagens, de fragmentos da memória. O próprio músico confirma, remetendo aos cenários sertanejos tão presentes na infância (confira entrevista ao lado).

A relação estreita de "Cortejo" com as imagens e o imaginário cearenses salta aos olhos. Da capa, com um pé sujo pelo trabalho pesado e um cenário castigado pelo sol (ainda que bonito) aos títulos das canções. A religiosidade sugerida pelo título do disco "Cortejo" (e da quarta faixa do álbum) é confirmada em outras passagens. Canções que se alinham e sucedem no meio do disco, partindo da segunda música ("Devoto"), seguindo por "Caldeirão/Juazeiro", passando pela já citada faixa-título, até chegar em "Curandeiro" e "Brejo Santo".

Passando da leitura à audição, percebe-se que a evocação memorialística de Cristiano Pinho é ainda mais complexa. Não é macumba para gringo ver. O disco não se esgota no sertão, nem este respeita os limites normalmente aceitos. Primeiro, porque o músico não esquece sua trajetória. Evoca o jazz (que teve presença marcante em seu primeiro solo, "Pessoa", de 1997), o blues, o rock, o pop mais orgânico, a MPB e os ritmos tradicionais, caso do maracatu e do baião. O disco traz uma interpretação das sonoridades sertanejas que se distingue de outros hibridismos musicais. Não é o caso da "mistura" do som cabeça, urbano, com o som rural, da tradição. É como se, na própria urbe, o músico encontrasse o Interior, pulsante e definidor. Neste ponto, o disco remete a um aspecto particular da capital cearense, que se moderniza por vezes tentando negar a presença do sertão em seus hábitos. Ainda que essa dissociação não seja possível. No caso de Cristiano, tal amálgama não deve ser rejeitado, mas celebrado.

Faixa a faixa

O disco abre com "Mar de saudades". É um dueto da guitarra de Cristiano Pinho com a percussão do maracatu cearense (no caso, o Az de Ouro). Uma das soluções mais interessantes para o cruzamento do maracatu cearense com outro gênero. Mais cadenciado e lento do que seu correspondente pernambucano, ele não se presta ao frenesi roqueiro que marcou o manguebeat. A guitarra de Pinho desliza suave. E acerta ao não deixar o blues ocupar todo o espaço (combinado com o maracatu, renderia decerto uma canção bastante triste). Pinho adiciona uma levada roqueira, virtuoses, com irrupções de solos, que levam a canção em outra direção. E abre o disco em grande estilo.

Em "Devoto", Cristiano Pinho tem como parceira a cantora Katia Freitas, sua mulher e, ao lado dele, produtora do álbum. O músico foge do óbvio que o título pode sugerir. Os elementos religiosos são de outra ordem, o piano e o teclado de Marcus Vinnie e os vocais de Katia Freitas se destacam, num blues-gospel. Os metais de Zé Carlos, Ferreira Junior, Carlinhos Ferreira e Edson Pinho se sobressaem, ora entrando em sintonia com o lado espiritual da canção, ora fazendo passeios profanos (que remetem aos bons metais dos discos dos Stones na década de 1970).

Cristiano Pinho troca de armas em "Caldeirão". Substitui as seis cordas pelo teclado e pela rabeca. A passagem, contudo, não é abrupta. Dos ritmos norte-americanos da canção anterior, o músico entra num território meio "western" nos primeiros momentos da canção (quase como se tocasse um slide). Aos poucos, adentra e imerge na tradição sertaneja. Seu "Caldeirão" se encontra com "Juazeiro", da lavra dos mestres Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira.

Na sequencia, fica clara a razão de "Cortejo" ter desencadeado tal projeto. Em seus quase cinco minutos de duração, ela é uma miniopera rock sertaneja. Nasce como uma balada, mergulha no blues, passa rápido pelo jazz e lembra "You don´t know me", de Caetano Veloso. No centro há um show de virtuose na guitarra, não naquela linha chata e exibicionista, mas climática, esfumaçada. E se encerra algo apoteótica, crescendo e lançado rasgos de lamentos.

Com assobio do parceiro, "Curandeiro" é uma vinheta estranha, experimental e onírica. "Brejo santo" segue na linha experimental, ainda que o tom principal seja o do baião.

Em "Sertão noturno", ouvem-se as influencias ibéricas, com um arranjo romântico que parece saído de um drama antigo. Mais uma vez Pinho foge aos cruzamentos óbvios, apostando nas linhagens menos dançantes dos dois gêneros. Destaque para os vocais de Fagner, que literalmente usa a voz como instrumento.

"O menino e o cego" é, aparentemente, a mais sertaneja, a mais enraizada na tradição. E seria mesmo, não fossem evidenciados na canção elementos de nossa formação que costumam passar despercebidos - caso dos ritmos orientais traduzidos via Portugal.

"Mãe das dores" é um blues-rock, marcado pela slide de Cristiano Pinho e por interferências do teclado. Canção triste, é uma das expressões máximas do minimalismo do compositor. Chega a ser tenso o diálogo de sua guitarras com os ruídos dos demais instrumentos. Impressiona que Cristiano Pinho a tire desse ponto na metade final da música, que ascende num dos melhores momentos do disco.

Gonzagão torna a dar às caras em "A volta de Asa Branca" (parceria com Zé Dantas"). Numa interpretação minimalista e até tradicional, ela abre espaço para "Sertão linda flor", mais uma faixa com acento luso.

O disco fecha com uma pequena peróla: "Capineiro", um surpreendente repente-blues. Única faixa cantada do disco, nela Cristiano Pinho toca a guitarra e uma percussão mínima, enquanto Raimundo Fagner canta uma quadra tradicional.

Instrumental 
"Cortejo"
Cristiano Pinho
R$ 30,00
11 faixas
2010
Ellemento

ENTREVISTA - Cristiano Pinho *

"´Cortejo´ tem a ver com as influências das origens, do início da carreira"

Como se deu o processo de criação de "Cortejo"?

O primeiro passo foi reunir um repertório para o disco. No CD, estão músicas que eu vinha fazendo ao longo da minha carreira. Teve uma parte burocrática, de enviar projetos para captar recursos por leis de incentivo, de conseguir um patrocínio com o Banco do Nordeste. E aí fomos gravando, enquanto o conceito ia se moldando. Produzi parte no meu home studio, em São Paulo, depois no Ararena, em Fortaleza, e mais alguma coisa em São Paulo. Não foi um processo de gravação contínuo, aconteceram pausas.

O motivo dos intervalos não foi apenas a burocracia, mas também o trabalho que você desenvolve com outros artistas. Essas pausas ajudam ou atrapalham?

Ajudam, sempre ajudam. É claro que não sei dizer como o CD seria se tivesse sido gravado de outra forma. Mas é bom sair e voltar. E ver o que você já fez com outros olhos.

Treze anos separam seu primeiro disco solo de "Cortejo". O que mudou de lá para cá?

Continuei produzindo, com outros artistas. Katia Freitas, Fausto Nilo, Fagner... Só que meu trabalho paralelo continuava dentro do meu estúdio. Estava sempre registrando minhas ideias. Foi mesmo um processo de amadurecimento, não só como músico.

"Cortejo" é um trabalho coeso, como um disco temático. Como chegou a esse ponto?

Nesse projeto, parti de uma música, a própria "Cortejo" (quarta faixa do CD). Fui moldando esse repertório em cima, compondo outras músicas. O que posso dizer é que é algo muito em cima das imagens, das nossas referências, tem a ver com influencias das origens, do início da minha carreira. No meu trabalho, ora estou em São Paulo, depois no Rio, aqui e acolá. Mas a minha música guarda uma relação forte e estreita com o Ceará, com as imagens do sertão. Ouve-se também um pouco das minhas influências do rock. É um pouco disso tudo.

Como é trabalhar como artista solo ao invés de colaborador?

É bem diferente. Quando você trabalha com outro artista, é preciso compreender o que ele quer. Então, por conta disso, você fica mais comedido. Porém, claro, contribuindo, colaborando e dando personalidade ao trabalho. Quando é um disco seu, você pilota tudo.

Alguma coisa de que você gosta ficou de fora do disco?

Ficou sim. Nossa! Sempre compus muito. Tem até material para produzir outro disco, mas esse não é o momento. Só espero não precisar mais desse tempo todo. Num disco, você precisa fazer uma triagem do material. Não quer dizer que o que ficou de fora é inferior. Só não estava no contexto e deixei para outra hora.

Guitarrista, violonista e compositor

DELLANO RIOSREPÓRTER

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