Abaixo transcrevo matéria do Caderno Vida e Arte do Jornal O Povo sobre a construção histórica da identidade do povo nordestino.
Onde fica o Nordeste?
A fatalidade de uma região marcada pelo atraso ou a construção de uma região a partir de relações de poder? o Vida & Arte Cultura pergunta sobre as coordenadas históricas do Nordeste
Se você estiver perdido no emaranhado de expressões culturais do Brasil, distribuídas entre os quatro pontos cardeais do vastíssimo território nacional, pode ser útil um inventário cartográfico dos estereótipos brasileiros, uma estratégica operatória que compartimente as variáveis em um número limitado de coordenadas.
Em um esforço preciso de síntese, é possível chegar a um número que cabe nos dedos de uma mão, contabilizando, a partir do dedão, o gaúcho dos pampas, o malandro carioca, o paulistano estressado, seguido do nortista – o povo da floresta – e chegando, finalmente, ao nordestino.
É bem verdade que existem erros crassos na sua tipologia, falhas no método e ausências imperdoáveis como o caipira, espécime que vai de Minas Gerais ao Mato Grosso. Todavia, sua estratégia já indica percursos relativamente delimitados e tem um trunfo no ponto colateral localizado entre o Norte e o Leste, que encaçapa de uma só vez nove estados da Federação.
Uma viagem ao Nordeste pode proporcionar ao turista um mergulho em um Brasil atemporal, com expressões da tradição popular vivas e um povo que seria sempre alegre, não fosse a recorrência da escassez de água, fenômeno que leva o singelo nome de “seca”, marca indelével do povo do sertão, signo do atraso da região mais pobre do Brasil.
Entre fato e ficção, esse exercício descabido acaba por revelar imagens do Nordeste que são instantaneamente suscitadas ao se levantar o assunto. O Vida & Arte Cultura deste domingo questiona esses padrões e investiga as razões históricas por trás da construção desses estereótipos em artigos do jornalista Plínio Bortolotti e do professor e pesquisador da cultura, Gilmar de Carvalho. Além disso, o caderno traz uma entrevista sobre o tema com o professor Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes.
http://opovo.uol.com.br/app/o-povo/vida-e-arte/2010/07/24/internaimpressavidaearte,2023700/onde-fica-o-nordeste.shtmlAldeia universal
Europa, São Paulo, Nordeste
O professor Eduardo Diatahy questiona na entrevista abaixo a imagem do Nordeste como região decadente, retrato da pobreza no país
24/07/2010 15:00
O professor Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes é cearense, intelectual talhado nessas terras, viajado em tantas outras, membro da Academia Brasileira de Letras e do Instituto Histórico do Ceará. Autor do artigo Existe o Nordeste?, publicado no Anuário do Ceará 2010/2011, em que questiona a naturalização da região e seus estereótipos, Diatahy recebeu O POVO em sua casa para falar sobre um assunto que lhe enseja reflexões sobre a colonização portuguesa até os critérios de financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ).
Em suas aulas, no Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Ceará, é corrente a denúncia dos “paulistismos” no meio intelectual ou de crimes históricos como o “Massacre de Canudos”, um dos temas mais caros em suas pesquisas, o assassínio de milhares de “nordestinos” pela República. Ao mesmo tempo, as referências aos intelectuais daqui e de estados vizinhos são uma constante, sempre se mantendo distante dos modismos intelectuais da época, ressaltando o pioneirismo e a senso crítico de pensadores como Capistrano de Abreu.
Nos trechos abaixo da entrevista, Diatahy fala sobre como a ideia de “Nordeste”, com todos os seus estereótipos e imagens repisadas, foi construída nas primeiras décadas do século passado, desde uma conjuntura econômica e política que deixou obsoletos os antigos engenhos da Bahia e do Recife, fez do Rio de Janeiro capital política e de São Paulo centro econômico. (Pedro Rocha)
O POVO - A ideia de uma região chamada “Nordeste” foi imposta?
Eduardo Diatahy Bezerra de Menezes - O sentido de Nordeste foi imposto. Você não tinha um documento falando nisso. Nordeste é um ponto colateral. É só uma lógica do espaço criada geometricamente pela cartografia. Pelos textos, até mais ou menos 1920, você não encontra uma referência ao Nordeste. Pelo contrário, o Darcy Ribeiro chama a atenção para o fato de que até o começo do século XVII, Pernambuco e Bahia tinham a maior renda per capita do mundo. Quer ver? Você se pergunta, em vez de fazer essa historiografia dos livros didáticos em que as coisas acontecem e a gente não sabe qual é a razão, porque é que holandês, francês, o diabo a quatro, ficou brigando pelo Maranhão e invadindo o Brasil. Se você pegar todas as estatísticas de população, de importação, de exportação, até 1870, o foco era aqui. Por que os holandeses não foram para São Paulo ou para o Rio de Janeiro? Porque não tinha nada a oferecer... Eu estou exagerando (risos), mas é isso. Os jesuítas saíram da Bahia por terra, enfrentando rio, cobra, mata, para chegar lá no alto do planalto e montar um colégio pequeno pra cuidar dos índios que estavam lá morrendo de frio e de fome.
OP - Essa busca por descrever identidades regionais se dá principalmente no plano intelectual?
Diatahy – O Gramsci diz que os intelectuais são os burocratas da ideologia, são eles que produzem o que os poderosos querem (risos). A ideologia colonialista se exprimiu pelo determinismo geográfico, que era para justificar a pressão deles em cima da gente. Nós estávamos destinados a fornecer matéria-prima e eles eram os senhores da civilização. A ciência expressava isso, não era nem por maldade dos cientistas, era por burrice, falta de uma informação histórica. Olha, houve uma necessidade de inventar essas coisas, não sei se foi deliberado, mas quando a Europa começa a produzir açúcar na América Central e intensifica a produção no Haiti, Cuba, etc., isso arrasa a economia tradicional e escravocrata do Nordeste. O Nordeste não teve tempo de se atualizar. A cana foi o grande produto do País, que era uma colônia de exploração e não de povoamento, daí o nosso atraso. O Capistrano (de Abreu) também se preocupa muito com isso porque não formava, não tinha estradas intermediárias que ligassem um lugar ao outro.
OP - O Nordeste pagou a conta desse tipo de colonização?
Diatahy – Sim, também. A tentativa de fazer algo diferente foi quando (Maurício de) Nassau, um alemão contratado pela Holanda, veio administrar a ocupação. Eles não quiseram brigar com Olinda e fizeram Recife. Ele fez reforma urbana, canalizou rios, fez o diabo a quatro. Gastou tanto que a administração holandesa o mandou de volta para casa (risos). Mas ele trouxe cientistas, trouxe judeus, abriu sinagogas, acabou com o monopólio do catolicismo, que era uma das coisas do nosso atraso. Mas Pernambuco e Bahia só transformaram os velhos engenhos muito depois, atrasaram-se na modernização por falta de capitais. E também o centro dinâmico do País se deslocou quando o vice-reinado foi pro Rio de Janeiro. A sede do Governo Geral e do Vice-Reino era na Bahia, quando transferiram, o Rio de Janeiro começou a crescer como área urbana e pólo motor da política. Quando vem o café, que se expande na Baixada Fluminense e se torna o grande produto de exportação do País. O café vai subindo pras terras roxas de São Paulo e começa a dar importância a São Paulo, porque antes São Paulo tinha duas coisas, as fazendas e os mercenários, que eles tentaram transformar em heróis. A figura do bandeirante foi construída pela historiografia paulista no final do século XIX. Há uma História Geral das Bandeiras Paulistas (1924-1950), em 11 volumes, que eu duvido que algum brasileiro tenha lido além do (Afonso) Taunay, que escreveu.
OP – Esse discurso atinge apenas o Nordeste?
Diatahy - Eu tenho impressão que inclusive outras áreas também sentem isso. O Norte porque tem todo um imaginário da Amazônia e do mistério, mas mesmo assim eles veem aquilo ali como um lugar de exploração. Os solos da Amazônia são terrivelmente frágeis. Na hora que tira a floresta, toca fogo, planta pasto, dentro de dez anos está tudo desertificado. Fizeram isso com uma boa parte do Rio Grande do Sul e agora estão migrando para Rondônia. Está cheio de gaúcho ocupando esses territórios. Sabe quem deu o nome de Rondônia? Foi o Roquete Pinto que deu esse nome em homenagem ao Rondon, porque foi lá a primeira pesquisa etnológica dele. Mas, olha, na época que eles estavam fazendo o neobandeirantismo, eles mandaram essa turma todinha para cá, o Rondon inclusive veio para “recivilizar”. Vieram para Fortaleza, foram para Juazeiro. Pega o livro O Joaseiro do Padre Cícero (1929), do Lourenço Filho, que é bem feito, bem escrito como um todo, ele era um talento literário e científico, mas veja as páginas de preconceito contra o Juazeiro, contra o fanatismo, a ignorância, o atraso. Quer dizer, todo esse vocabulário está pespegado na imagem do Nordeste. E taí, hoje Juazeiro é uma das cidades mais progressistas do País no interior.
OP - Esse domínio sobre a região se dá em outras esferas ainda hoje?
Diatahy - Por exemplo, a Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) era para industrializar o Nordeste. O que foi que eles fizeram? Mandaram indústrias secundárias pra cá. A Ford está lá? Manda fazer o trinco no Nordeste. A Nestlé está lá? Manda fazer a lata. Mas não traz a indústria, a tecnologia, é a mesma esculhambação que os americanos fazem, que os europeus fazem com os países da Ásia, da África, da América Latina. Não transfere tecnologia, faz o complementar. Ou seja, isso aqui é o exército industrial de reserva. Agora quem conhece história sabe que miséria era lá, morriam de frio, de fome, e foi a riqueza produzida aqui que foi levada para lá. Olha, quando eu tava no CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), não sei quantas vezes eles negavam projetos daqui. Os comitês são quase todos do Sudeste ou então tem nordestino, mas do tipo que lambe a bunda de paulista para se projetar. Mas quando eu estava lá, neguei coisa até pro Fernando Henrique, quando o Fernando Henrique tava no Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). “Peraí, que o dinheiro é público e o Cebrap é uma empresa privada. Ele já tem dinheiro norte-americano”. Aí falavam: “Você fica aprovando esses projetos lá de João Pessoa, do Rio Grande do Norte, essas porcarias”. “Você leu? E se eu não der dinheiro para lá como é que eles vão se desenvolver?”
OP – Você acha que nós assumimos essa imagem?
Diatahy - Nós fomos nordestinizados, a gente se deixou... E é meio difícil, porque você fica dizendo assim: “E como é que eu chamo?” Chame semi-árido, chame de Fortaleza, chame de “minha província”, chame de “meu País”, como os franceses dizem. Francês quando fala “meu País”, não se refere a França, não. É lá a aldeiazinha onde ele nasceu. Essa é a imagem que os grandes pensadores tem. Você quer ser universal? Fale da sua aldeia. A condição humana é a mesma em todo canto, é miséria, é luta, é sonho, é devaneio.
Identidade e história
Filho mestiço entre Norte e Sul
Uma pesquisa de documentos do começo do Século XX denuncia a idade deste rebento da antiga geografia brasileira
24/07/2010 15:00
Antes de 1920, Norte e Sul eram espaços relativamente desconhecidos entre si. Grandes distâncias, deficiência nos meios de transporte e comunicação e o baixo índice de migrações internas entre as duas regiões eram as principais consequências disso. O historiador cearense Capistrano de Abreu se perguntava ainda no século XIX se depois de quatro séculos de colonização havia restado alguma consciência nacional e a conclusão era negativa.
Mas a industrialização, a urbanização, a imigração em massa e o fim da escravidão são alguns elementos que engendram um contexto histórico no começo do século XX e alteraram essa geografia, começando a distinguir o Centro-Sul, particularmente São Paulo, de outras regiões do País. Enquanto isso, o antigo Norte passou por grave crise com o aprofundamento da dependência econômica e de sua submissão política.
O historiador e sociólogo Oliveira Viana, por exemplo, no livro Evolução do Povo Brasileiro (1937), concede à São Paulo estatuto maior na constituição do País, por ser “o centro de polarização dos elementos arianos da nacionalidade”. Seguindo esse raciocínio, o Norte será uma região condenada, “pelo caráter mestiço de sua raça e também pela tropicalidade de seu clima”, à decadência.
O Sul é alçado como ponto de referência para a constituição do País e as regiões estranhas, principalmente o Nordeste, representadas a partir de termos pré-estabelecidos. Exemplo é o relato do jornalista Paulo de Moraes Barros, enviado ao Juazeiro do Norte, considerando a inferioridade racial dos nordestinos razão do aparecimento dos “fanáticos boçais que se disseminavam por toda parte na região” e das “turbas que os assediam, homens e mulheres de aspectos alucinados, olhos esbugalhados, com os braços estendidos, atirando-se por terra, tentando tocar a barra da batina do beato”.
Para o historiador Durval Muniz Albuquerque Jr., autor do livro A invenção do Nordeste e outras artes (2006), o regionalismo nordestino, capitaneado por pensadores como o pernambucano Gilberto Freyre e o potiguar Luís da Câmara Cascudo, será a outra face dessa moeda. A partir de uma forma diferente “de ver, de dizer e de pensar a questão da nação”, consequência de uma “resistência maior de padrões mais tradicionais de sensibilidade e sociabilidade na região”, será formulado o regionalismo nordestino.
No cruzamento desses discursos, surgirá o Nordeste, antes sem existência entre as referências geográficas do país, agora cada vez mais um fato aparentemente consumado que irá identificar nove estados brasileiros em um punhado fixo de imagens.
Cidadãos do mundo
Invenções e clichês
Para o professor da UFC, Gilmar de Carvalho, é tempo do Nordeste deixar de ser vítima de sua própria história
Parece fácil falar sobre o Nordeste. Basta um álibi para o desfiar dos clichês e repetir à exaustão o que todo mundo pensa que sabe.
Vale tentar colocar algumas balizas nesta reflexão. Em primeiro lugar, há um abuso da ideia da invenção. Em determinados círculos intelectuais, o conceito se vulgarizou a partir de Eric Hobsbawm. Quando ele fala na “invenção das tradições”, fica fácil pegar carona e falar da invenção de tudo. Falar em cultura é falar em invenção. Desde o fogo, a roda, as inscrições rupestres, passando pela combustão do átomo, pelos “chips”, pelas vacinas, o homem não fez outra coisa senão inventar.
O que pouca gente diz é que esta invenção não se sustenta no vazio e precisa de um contexto para vicejar. Ou se articula a partir de um quadro favorável de expectativas, anseios e cobranças.
O Nordeste sempre existiu, mesmo que não tivesse esse nome, e fosse chamado de Norte. Existia um sentimento de pertença e uma raiz que pode ser buscada na oralidade. Talvez esteja aí um dos eixos da constituição da região.
Franklin Távora falava, no prefácio de O Cabeleira, no final do século XIX, de uma literatura do norte e de uma literatura do sul.
O que ele talvez sentisse como artista, e não quisesse dizer como cidadão, era que o Norte se esvaziava de importância econômica e perdia poder político. Estavam lançadas as bases de uma ruptura que chega ao cúmulo da idiotice com a ideia de um Nordeste independente.
O Nordeste foi inventado e nos inventou. Talvez se possa colocar como marco temporal da criação desta região rica, contraditória e problemática, a constituição da entidade de combate às secas, a partir de 1909, embrião do atual Dnocs.
Parafraseando José Saramago, pode-se pensar em uma jangada (e aqui cabe bem o termo) de pedra, não exatamente despregada do Brasil por não se sentir Brasil, mas por se sentir à deriva. O sentimento de pertença não conflita com o se sentir sem rumo. As ideias não seriam excludentes, mas superpostas.
Outra provocação é evidenciar a opção feita pela caricatura. O Nordeste vestiu a carapuça da crise e o uso do cachimbo deixou torta a boca e a mão estendida, sempre a pedir. Aceitou, sem maiores reclamações, o rótulo do atraso.
Convive-se com a ideia equivocada de que todos os coronéis são daqui. São esquecidas as vassouras, as capas pretas, as malas idem, além de outras mazelas clientelistas, assistencialistas ou paternalistas. Nossos coronéis não são melhores nem piores, apenas nunca estiveram e nem estão sozinhos na cena nacional.
A premissa da região problema vem se reforçando ao longo do tempo. E a desmontagem dos estereótipos não está incluída nas regras do jogo. Faz parte da lógica das ideologias aceitar os clichês sem discussão, como se fossem verdades inquestionáveis.
O reforço passou, inclusive, pelo romance social, com todas as virtudes que tenham tido Graciliano, Zé Lins, Rachel, José Américo e outros. Não se trata de negar a importância desta abordagem, mas de chamar a atenção para a exibição da chaga aberta da perna do mendigo, no meio da rua.
A Universidade de São Paulo ainda hoje não engole Gilberto Freyre e Cascudo não tem a grandeza de sua contribuição reconhecida.
É frequente o olhar para o passado com instrumentais teóricos e com um viés de hoje. Assim, ainda tem quem considere os beatos (Conselheiro, Zé Lourenço e tantos outros) como fanáticos. Muita gente diz rotula Padre Cícero de conservador, como se ele pudesse ter sido da teologia da libertação.
E tem a seca, sempre a seca que, de repente, como em um passe de mágica, sumiu do noticiário, quando não foi mais conveniente estimular o êxodo para os seringais da Amazônia, para as fábricas paulistas ou para a construção de Brasília. A seca de 1983 a 1987 foi considerada por Dom Aloísio Lorscheider, então cardeal arcebispo de Fortaleza, um genocídio, de acordo com matéria publicada pelo jornal francês Le Monde. E quem se ocupou da seca de 2010? Aliás, pela leitura dos jornais, não houve seca este ano.
Lampião passou a ser compreendido depois da pesquisa de Chandler ou de Hobsbawm (outra vez) ter escrito sobre “rebeldes primitivos”. Até então era facínora. Parte da intelectualidade torceu o nariz para Luiz Gonzaga por ser “de direita”.
Não é fácil escrever sobre o Nordeste, ainda que possa parecer, à primeira vista. Dizer o quê? O elogio à força da cultura é pouco ou pode ser um argumento falacioso, nestes tempos de linha de montagem, de produtos para as massas e de diluição como estratégia criativa.
A Bahia chacoalha seu axé como compensação por não ser mais a capital do Império. Pernambuco faz réquiem para o fogo morto dos seus engenhos. O Ceará teve no algodão um vislumbre de apogeu, até que apareceu um tal de bicudo e o sonho acabou.
Boa parte de nossas manifestações culturais não atrai as engrenagens da chamada Indústria Cultural. Estão catalogadas no que chamamos de “folclore”. A grandeza de parte de nossos artistas beira a indigência. Existirá algo mais abominável que o sotaque nordestino dos programas de tevê?
Chega de sermos pobres coitados. Não dependemos do que pensam de nós os que detêm o controle dos meios de comunicação. Sem nos fecharmos para o mundo, não podemos abrir mão da nossa dignidade. Não somos vítimas. O mundo não se acaba porque não somos “queridinhos” da mídia: abaixo a ideologia do sucesso. Os Irmãos Aniceto fazem uma música e uma dança que se nivela com o melhor da produção internacional. Espero que não queiram viver os quinze minutos de fama ao qual teriam direito.
O compromisso com o nosso tempo e com o mundo em que vivemos, vai além dos modismos, das delimitações geográficas, e dos rótulos. O Nordeste é nossa aldeia (apesar de quererem apagar nosso “DNA” indígena), mas somos cidadãos do mundo. Aliás, em tempos de globalização, a valorização do local é inevitável. A recusa à caricatura pode ser o começo de um processo de valorização do que fomos, do que somos e do que queremos ser.
Apesar da inegável importância do mangue-beat, nem tudo se resolve com a tradição plugada. O novo forró cearense é exemplo de uma aparente “fuga para a frente”, como diria outro teórico. Se o sertão nunca foi medieval, tampouco as parabólicas espetadas nas casas de taipa significam um novo tempo.
> Gilmar de Carvalho é professor do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Ceará e autor de livros como Artes da Tradição e Tramas da Cultura.
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