Lei faz da água uma mera mercadoria, diz Caubet
Roseli Ribeiro - 16/02/10 - 17:29
A lei 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos no Brasil, foi votada em 1997. Até hoje, a parte mais aplicada desta lei é o conjunto de disposições que permitem fazer da água uma mercadoria, na opinião de Christian Guy Caubet, “a lei 9.433/97 promove a mercantilização da água”. Para o professor “os problemas de recursos hídricos são de natureza política”.
Em entrevista ao Observatório Eco, Christian Guy Caubet autor do livro “A água, a lei, a política… e o meio ambiente?”, ressalta a ausência de educação ambiental como um dos motivos pelos quais essa riqueza, a água não seja valorizada corretamente. Para o especialista, muitos poluem porque vivem em condições precárias e não podem descartar corretamente seus efluentes, lixo ou excrementos. “O que não é motivo para dizer que a pobreza é o maior poluidor”, até porque “o pobre polui infinitamente menos que o rico, apesar do que se afirma de maneira absurda” diz o jurista. Caubet ainda indaga, por exemplo, “quem constrói coletores de esgotos nos lugares de maior densidade populacional”.
Christian Guy Caubet recentemente foi nomeado para o cargo de Ouvidor da UnB (Universidade de Brasília). Especialista em recursos hídricos, com vários livros publicados sobre o tema, ele também é pesquisador IA do CNPq. Formado em Direito pela Faculté de Droit et des Sciences Economiques de Toulouse I, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, e doutor pela Université des Sciences Sociales de Toulouse I em 1983. Caubet também é professor titular do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
“Proteger o meio ambiente exige comportamentos que nossas sociedades não querem enfrentar, obnubiladas que são pela satisfação de seus desejos em prazos curtos e a custo reduzido”, afirma o professor. Veja a entrevista que Christian Guy Caubet concedeu ao Observatório Eco com exclusividade.
Observatório Eco: Quando analisamos os três elementos água, lei e política podemos afirmar que no Brasil, o tema tem sido tratado de forma satisfatória?
Christian Guy Caubet: Tratar o tema de forma satisfatória? Satisfatória para quem?
A lei 9.433/97, que institui a Política Nacional de Recursos Hídricos, foi votada em 1997. Até hoje, a parte mais realizada foi o conjunto de disposição que permitiam fazer da água uma mercadoria.
A lei 9433/97 promove a mercantilização da água. Ela inclui nos seus propósitos a possibilidade de poluir para criar riqueza. Qual é a riqueza que se pretende criar pela poluição da água?
Quando afirmo isso, sempre aparece alguém para dizer: O Professor exagera! O Professor adota atitudes radicais!!
A Lei prevê que um usuário pode requerer a outorga de volumes de água para a finalidade de “disposição final de efluentes”.
Na prática: um empreendedor pode avaliar que os efluentes produzidos por sua atividade exigem um volume de 30 ou 17 ou 55 m cúb.sec. para serem diluídos. Pede a outorga dessa quantidade de água para esta finalidade: o pedido é deferido e ele passa a ter o direito de poluir, isso é: de praticar a operação de alterar a composição física, química ou biológica da água.
Segundo a definição da lei 6938/81, artigo 3, inciso III, poluição é a degradação da qualidade ambiental resultantes de atividades que direta ou indiretamente: prejudiquem a saúde, a segurança e o bem estar da população, criem condições adversas às atividades sociais e econômicas, afetem desfavoravelmente a biota, afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente, lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos.
No caso da outorga para disposição final de efluentes (?), a subversão do princípio poluidor-pagador foi total, já que o pagador da outorga adquire o direito de poluir a água.
Alguém argumentará que isso não é a consagração do princípio pagador-poluidor?
Alguém dirá que os “efluentes” serão “diluídos” pela água, que possui a característica de “se regenerar”?
Alguém dirá que se trata de contaminação e não poluição provisória, e que, aliás, se fosse poluição, a autoridade administrativa não concederia outorga! Esse “alguém” demonstrará estar se valendo de má-fé, de ignorância sobre o que é poluição, ou de incompetência?
O beneficiário da outorga realiza operações privadas que objetivam seu lucro econômico, com base no uso de um bem “de domínio público” segundo a lei 9433/97, mas “bem de uso comum do povo” segundo os críticos, que observam politicamente quais são as conseqüências das políticas públicas de recursos hídricos.
As conseqüências, dessa maneira irresponsável de outorgar este uso da água, são trágicas: “direito adquirido” a poluir; confisco de volumes de água para finalidade de piorar o balanço geral, quem afirma que a água se “auto-depura” e volta ao statu quoanterior não sabe do que está falando ou está mentindo para lograr benefícios próprios.
O tema foi tratado de forma satisfatória para quem?
Observatório Eco: De modo geral, o brasileiro lida mal com os seus recursos hídricos? Por qual razão?
Christian Guy Caubet: Genericamente, é difícil fazer as coisas certas quando não se tem informações e formação certas. Ninguém faz coisas erradas porque gosta. Muitos desperdiçam ou poluem a água porque não receberam educação ou informações suficientes.
Muitos poluem porque vivem em condições precárias e não podem descartar corretamente seus efluentes, lixo ou excrementos. O que NÃO é motivo para dizer que a pobreza é o maior poluidor.
O pobre polui infinitamente menos que o “rico”, apesar do que se afirma de maneira absurda. Mas quem constrói coletores de esgotos nos lugares de maior densidade populacional? Quem abastece com água tratada os lugares com maior densidade populacional? E os lugares afastados dos centros urbanos?
Observatório Eco: O que falta para o Brasil evoluir legislativamente no campo do direito ambiental? O que falta para o Brasil evoluir no campo prático do direito ambiental?
Christian Guy Caubet: O Brasil possui excelentes normas relativas aos recursos hídricos e na área ambiental. Falta aplicá-las. Este “falta aplicá-las” não é o resultado de uma fatalidade inerente à sociedade brasileira. É o resultado de uma decisão política persistente e deliberada de omissão.
As leis relativas à proteção e garantia da propriedade privada são aplicadas com eficiência e a propriedade privada está superprotegida no Brasil. Para proteger a propriedade privada, os operadores jurídicos chegam a elaborar argumentos absurdos.
Os operadores políticos chegam a tomar decisões aberrantes para promover políticas públicas confiscatórias de recursos, no intuito de atribuí-los a não-carentes. Por que a água do São Francisco há de viajar para o Nordeste, se os ribeirinhos do rio não recebem sua água, a apenas 4 quilômetros de suas margens?
Se a política pública objetivava garantir a água para todos, por que não cuidou primeiro de abastecer os ribeirinhos e de recuperar todas as áreas degradadas na área de montante, no intuito de “produzir” água para mais gente?
O que faz falta, é implementar as leis existentes, não é criar novas leis para remediar situações que as leis atuais permitem remediar, desde que haja vontade para isso.
Observatório Eco: Os resíduos sólidos recebem um tratamento mínimo por todo o país. Uma lei que trate da política de resíduos sólidos pode superar a cultura do brasileiro de ainda jogar lixo na rua?
Christian Guy Caubet: Globalmente, não há tratamento mínimo adequado de resíduos de norte a sul.
A lei já prevê a interdição da disposição final de resíduos sem condições adequadas previstas na própria lei. A Lei federal 2.312 é de 3/9/54. Ela afirma que “a coleta, o transporte e a destinação do lixo deverão processar-se em condições que não tragam inconvenientes à saúde e ao bem-estar público, nos termos da regulamentação a ser baixada”.
A lei prevê a necessidade de autorizações administrativas/sanitárias para a criação de aterros sanitários e a proibição de lixões/aterros não controladas; tolerando “aterros controlados” que fogem de qualquer controle em prazos reduzidos. As autoridades administrativas não fiscalizam os aterros e seu funcionamento, não mandam fechar os lixões, não recolhem os veículos usados para transportar lixo para aterros não credenciados, não fiscalizam as condições de retirada de resíduos por empresas credenciadas.
Observatório Eco: Hipoteticamente, se o senhor fosse ministro do Meio Ambiente do Brasil, e tivesse carta branca, quais as 3 medidas urgentes que o senhor tomaria no início de sua gestão?
Christian Guy Caubet: Daria prioridade às ações seguintes: o controle estreito dos gastos públicos do ministério, em função das finalidades pelas quais tiverem sido decididos.
A criação de um cadastro nacional de propriedades rurais e imediata aplicação do Código Florestal para as áreas de preservação permanente onde quer que se encontrem inclusive nas áreas urbanas.
A criação de um cadastro dos recursos hídricos: decisão de outorga só para os pedidos que se enquadrarem no art. 13 da Lei 9433 (não aplicado no momento: exige que os usos das águas sejam aprovados previamente à outorga pelos comitês de bacia); levantamento de outorgas; levantamento de empresas especializadas em furar poços, acompanhamento de suas operações: cavar, produzir, tapar após o uso.
Em função das prioridades estabelecidas para o MMA, ninguém estranhará que eu não seja convidado a ocupar a poltrona de ministro.
Observatório Eco: Quando o senhor analisa as medidas políticas de âmbito ambiental de países como EUA, China, Rússia e Índia, por exemplo, o senhor conclui que estamos preservando o Planeta para que tipo de gerações futuras?
Estamos atualmente preservando o planeta para gerações futuras que haverão de ficar “como um peixe na Água”, segundo o desenho de minha autoria.
Alguém disse “desenvolvimento sustentável”?
Observatório Eco: Qual o alcance da expressão sociedade de risco? A sociedade parece ser incapaz de intervir e preservar o Meio Ambiente?
Christian Guy Caubet: A noção de sociedade de risco foi cunhada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck a partir dos anos 1985. Ele se referia a um tipo específico de relações sociais de países desenvolvidos, que importa em constante incerteza sobre os efeitos danosos de opções tecnológicas escolhidas para providenciar soluções para o consumo de massa.
Beck cita constantemente a produção de energia elétrica em usinas nucleares como exemplo mais preocupante dos riscos tecnológicos com conseqüências sociais aterrorizantes, e o acidente de Chernobyl (1986) como exemplo de que as opções tecnológicas acarretam conseqüências que escapam de nosso controle. Essa situação não comporta remédio, por ser estrutural nas nossas sociedades. Segundo Beck e muitos sociólogos que privilegiam esse tipo de análise, o risco se tornou uma situação imanente e sem recurso.
Este tipo de análise foi amplamente divulgado e fortalecido por inúmeros autores que, nas ciências sociais e humanas, divulgaram as idéias de Beck de maneira acrítica. O resultado é o fato de que muitos se convencem da inevitabilidade das conseqüências perniciosas da sociedade de risco e fazem dessa noção um credo ideológico.
No entanto, estudo pormenorizado do contexto dos riscos tecnológicos na sociedade contemporânea (pós-1945) mostraria que as “sociedades de risco” resultam de opções levianas deliberadas que tornam os danos inevitáveis. Em muitos casos, é só de maneira imprópria que se pode falar em “risco(s)” de danos ou prejuízos, pois em muitos casos não existe propriamente risco em uma determinada situação de tomada de decisão, nesse sentido de que o “acidente” ou o dano futuro são inevitáveis.
O apagão elétrico na metade do País, em novembro de 2009, não é “acidente” nesse sentido de que se a manutenção correta de uma rede elétrica não é feita de maneira a respeitar os requisitos de seu funcionamento, dita rede só pode acabar apagando.
De modo que não é de um “risco” que se trata, quando os responsáveis pela rede (concessionárias, Aneel, outros) deixam de cumprir ou fazer cumprir o respeito às normas de funcionamento: é uma decisão deliberada, geralmente tomada em função dos lucros econômicos esperados, e que ignora deliberadamente que a necessária conseqüência do descumprimento das normas será um “acidente”.
Se existe um “estudo elaborado pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico –ONS- para o período 2008-2011, [que] identificou 179 disjuntores superados, que precisam ser substituídos, e outros 211 em estado de alerta, próximos da superação, no linhão de transmissão da energia, a questão relativa à garantia de funcionamento da rede não é de saber se poderá haver um apagão, mas quando haverá.
“Proteger o meio ambiente” exige comportamentos que nossas sociedades não querem enfrentar, obnubiladas que são pela satisfação de seus desejos em prazos curtos e a “custo” reduzido.
Proteger o meio ambiente não tem custo reduzido. Além de requerer investimentos pesados, a “proteção do meio ambiente” não passa necessariamente por uma questão de custos econômicos. Mas essas questões, quando levantadas, são respondidas unilateral e fulminantemente por pessoas que possuem condições de impor suas decisões, por ação ou omissão.
Observatório Eco: Um conselho para os seus alunos que o senhor não se cansa de dizer?
Christian Guy Caubet: Não pratico orientações reducionistas, em particular no âmbito da metodologia. Se fosse possível resolver nossos problemas com o acervo legal disponível, isso já teria sido feito. De modo que as orientações incluem observações como: faça um levantamento do problema antes de buscar a solução na lei e busquem agregar todos os interessados na solução do problema para garantir êxito.
Conforme Albert Einstein, “não se resolve um problema com os modos de pensamento que o engendraram”. Assim, em primeiro lugar, os problemas de recursos hídricos são de natureza política. Em segundo lugar, são de natureza política e, em terceiro lugar, são de natureza política. Depois, buscam-se recursos econômicos, de engenharia e outros, para implementar o que foi decidido a portas fechadas.
Nota: 1Segundo matéria : PEREIRA, Renée. Estudo aponta uso de peças obsoletas. O Estado de São Paulo. 21/11/2009, p.B1.
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