domingo, 18 de outubro de 2009

Filme sobre as rendeiras de Aracati - Ceará

Realidade ficcionada

"Linhas de Organdi", novo trabalho do cineasta Glauber Filho, selecionado pelo programa Doc.TV, do Ministério da Cultura, mistura realidade e encenação e lança uma pergunta importante: quais os limites entre as obras de caráter documental e ficcional?

Cenas planejadas: "Linhas de Organdi", de Glauber Filho, mistura a linguagem documental com recursos de ficção para retratar o universo das rendeiras (Foto: Glauber filho)


No mundo contemporâneo, fica difícil precisar quais os limites entre a realidade e a ficção. Se de um lado, o jornalismo espetaculariza o real, usando uma série de recursos ficcionais para tornar as imagens reais mais agradáveis e instigantes aos olhos do espectador, por outro, a ficção percorre o caminho inverso e investe em temas e abordagens mais realistas. Realidade ou ficção? Se a pergunta ainda cabe, a linha entre os dois conceitos é cada vez mais tênue e coloca em xeque questões-chave que perpassam a ideia de documentário clássico ou de filme ficcional.

"Linhas de Organdi", novo trabalho do cineasta Glauber Filho, segue essa frente de debate, põe lenha na fogueira e coloca a questão em discussão. Selecionado pelo Doc.TV, programa da Secretaria de Audiovisual, do Ministério da Cultura, que visa ao fomento para a realização de obras audiovisuais documentais, o filme é um documentário, mas faz uso de vários recursos mais comuns ao universo da ficção.

Exibida no último dia 15, na Vila das Artes, e com novas exibições programadas na cidade de Aracati, onde foi filmado (no próximo dia 7 de novembro), e em seguida na Unifor (ainda sem data marcada), a produção tem estreia nacional na TV Cultura, em março do próximo ano.

Coro grego

Documentário ou ficção, "Linhas de Organdi" registra os segredos das labirinteiras dos Córregos de Anica, na cidade de Aracati. Mas, segundo o próprio Glauber Filho, a ideia não era fazer um documentário sobre a história da renda, e sim buscar revelar uma certa intimidade sobre o universo que cerca essas mulheres rendeiras. "Eu quis mostrar seus sonhos, seus desejos, o que elas realizaram ou não ao longo da vida", conta o cineasta.

É a partir desse foco que Glauber se afasta da concepção clássica de documentário e experimenta, ao pontuar as cenas do filme com a narração do Mito de Aracne, jovem tecelã que conquista a ira da deusa Atenas em virtude de seu trabalho perfeito de tecelagem. Desesperada por ter irritado Atenas, Aracne tenta se matar enforcada, mas é salva pela própria Atenas, que a transforma em uma aranha. Com locução de Leuda Bandeira, o mito quebra a narrativa das histórias das rendeiras dos Córregos de Anica e faz, de alguma forma, uma ponte entre as duas tramas, já que a tragédia não deixa de estar presente na vida das rendeiras, que, em virtude da minúcia de seu ofício, vão perdendo a visão ao longo da vida.

Para Glauber Filho, o mito de Aracne funciona como um coro grego e dá a "Linhas de Organdi" um tom de tragédia, ao mesmo tempo que a musicalidade da narração de Leuda Bandeira atribui ao filme uma tônica de fábula que mergulha a narrativa em um ar infantil e de ingenuidade que, segundo o cineasta, reflete a própria realidade das rendeiras. Mas não é só a inserção do Mito de Aracne que aproxima "Linhas de Organdi" da ficção.

Glauber Filho explora os limites entre realidade e ficção ao fazer algumas escolhas estéticas que tencionam os dois campos. Pontuado pelos depoimentos das rendeiras, o filme procura não mostrar as mulheres que estão falando ao ilustrar essas falas com encenações que tentam de alguma forma representar o que está dito nas palavras. Se a opção é questionável se pensada a partir do ponto de vista clássico sobre o que é um documentário, tais cenas funcionam dentro da proposta de "Linhas de Organdi" e emprestam uma poesia à obra que só a ficção é capaz de engendrar.

Imagens plásticas

Aliado a essas cenas previamente planejadas, a própria inserção do Mito de Aracne na construção da narrativa já funciona como um indicador de que a ideia aqui não é fazer um documentário típico. O uso da trilha sonora evidencia a opção pela experimentação. Longe da utilização comum do som captado diretamente, a música de Italo Almeida cumpre funções bem comuns às obras audiovisuais de ficção, ora atuando na fluidez da montagem, atribuindo continuidade às imagens, ora emprestando uma certa plasticidade a elas.

As intervenções do diretor na narrativa também deixam claro: a realidade de "Linhas de Organdi" é construída e fica evidente de que mais do que apoiado em um suposto real, o filme deve muito ao imaginário de Glauber Filho sobre a temática das rendeiras. Passível de crítica ou não, já que a obra é e será exibida como um documentário, é interessante perceber como "Linhas de Organdi" segue uma linha de documentários que abre possibilidades que vão além da mera representação do real.

Glauber pretende, inclusive, transformá-lo, futuramente, em um longa de ficção chamado "Labirinto Branco". O roteiro está em fase de primeiro tratamento e a trama vai girar em torno de uma rendeira que perde a visão e passa a enxergar o mundo por meio de suas emoções. Em relação a "Linhas de Organdi", Glauber Filho pretende remontá-lo para que ele possa ser exibido em festivais, já que, segundo o diretor, a montagem exibida na última quinta foi pensada para o formato televisivo.

"Tenho dúvidas se o filme é um documentário sobre as rendeiras ou sobre o Mito de Aracne"
"Pretendo remontar o filme sem o Mito para inscrevê-lo em festivais"
Glauber Filho
Cineasta

Mais informações
"Linhas de Organdi" (Bra, 2009). Direção de Glauber Filho. Participam da equipe de produção do documentário Isabela Veras, Joe Pimentel, Armando Praça, Danilo Carvalho, Ivo Lopes, Alexandre Veras e o músico Ítalo Almeida.

FÁBIO FREIRE
REPÓRTER


Fonte: Jornal Diário do Nordeste. Caderno 3. Fortaleza, 18 de outubro de 2009.
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=680787

Um comentário:

Carlos Nascimento disse...

Olá!!!
São tantas preocupações... não é?"...
Um Forte abraço.
Carlos Nascimento