segunda-feira, 22 de março de 2010

22 de março - Dia Mundial da Água






VOZES
Jerson Kelman: O fator água
Professor de recursos hídricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro e membro do conselho curador da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, Jerson Kelman avalia a gestão da água no Brasil dez anos após a criação da Agência Nacional das Águas - órgão que dirigiu entre 2001 e 2004 - e afirma que o país pode se tornar uma nova potência mundial

Mônica Pileggi






Edição Especial “Água, o mundo tem sede” 

[img1]O Brasil tem recursos naturais que, se bem utilizados, promoverão desenvolvimento econômico e social com baixa emissão de gases de efeito estufa. O principal deles é a água, abundante no país. Esse parece ser um cenário otimista para as próximas gerações. Todavia, a gestão da água no Brasil ainda precisa melhorar, e muito – e isso depende não apenas do governo mas também da sociedade. Para Jerson Kelman, professor de recursos hídricos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Coppe/UFRJ) e membro do conselho curador da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), a água pode ser o diferencial para tornar o Brasil uma nova potência mundial, “não da mesma forma que o petróleo”, diz ele, cuja exportação pode ser feita em sua forma bruta, mas como facilitadora do desenvolvimento econômico. 

O carioca Kelman, de 62 anos, foi o criador da Agência Nacional de Águas, a ANA, órgão que dirigiu entre 2001 e 2004. Ele descreve sua experiência no setor no livro Desafios do Regulador, em que discorre sobre questões como a transposição do rio São Francisco, usinas hidrelétricas na Amazônia, fornecimento de água e saneamento nos centros urbanos. “Usar a água de forma mais sustentável é uma necessidade, não um luxo”, diz. 



Nosso país possui a maior reserva de água doce entre as nações emergentes. Que diferença isso pode fazer no século 21? 

As pessoas costumam imaginar a água como uma commodity parecida com o petróleo. Ou seja, devido ao fato de o Brasil ter reservas significativas de água doce, poderíamos nos tornar exportadores desse recurso no futuro. Mas eu não acredito que seja essa a vantagem competitiva do Brasil, pois o valor da água versus o seu custo de transporte é muito desfavorável. Não é concebível a exportação de água em larga escala. Todavia, países como o Brasil, em que há abundância no binômio “terra e água”, dispõem de uma vantagem bem maior em relação a outros países, seja na produção e industrialização de produtos agrícolas, seja na própria indústria. Ter água é hoje um diferencial para uma nação ser uma potência econômica e social. 



A África do Sul, por exemplo, tem grande dificuldade em se desenvolver, pois padece de escassez desse recurso Esse quadro irá se tornar mais claro dentro de quanto tempo? 

O Brasil já sofreu uma transformação brutal. Basta observar a conquista do Centro-Oeste. Nós já somos grande produtor agrícola e relevante produtor industrial. Nada disso teria acontecido se não tivéssemos água. A tendência é aumentar. 



Na esfera política, o senhor acredita que a água é um tema prioritário? 

Penso que sim. Principalmente nas discussões sobre osemiárido, esse sempre foi um assunto relevante. No resto do Brasil, a água nunca foi um problema, com exceção de casos de outra natureza, como as enchentes. Em São Paulo e no Rio de Janeiro, por exemplo, o entendimento da continuidade de políticas públicas relacionadas ao controle de enchentes demanda a compreensão da sociedade como um todo e a perpetuação, ao longo de várias administrações, do uso mais apropriado do solo. O Brasil vivenciou 20 anos de ditadura e temos uma tradição política muito paternalista. Nossa sociedade ainda vive na infância da democracia, em que se atribui aos dirigentes a responsabilidade de resolver todos os problemas. É preciso perceber que o poder dos políticos é limitado e só o engajamento de todos é que vai fazer com que as condições de vida melhorem. Os países desenvolvidos já discutiram políticas públicas sobre a água de forma bastante intensa. A preocupação de usar esse recurso de maneira sustentável nas grandes cidades brasileiras é uma necessidade, pois está cada vez mais difícil e oneroso obtê-lo. 



Como o senhor avalia o uso da água no Brasil? 

Primeiro temos de diferenciar a água bruta da água tratada.A bruta é aquela retirada dos rios ou aquíferos subterrâneos para insumo de algo. Dessa água cerca de 70% é utilizada na irrigação, na produção de alimentos, 20% como insumo industrial e apenas 10% para abastecimento das cidades. As pessoas acham que vai faltar água em suas torneiras, mas não é isso o que vai acontecer. No entanto, a ineficiência de seu uso na área agrícola ainda é grande. Com um pouco mais de eficácia, sobraria muito mais água para o consumo doméstico. 



Isso explica eventuais problemas de abastecimento? 

Tais problemas estão relacionados à concentração urbana. A disponibilidade per capita na região metropolitana de São Paulo é bem menor que no semiárido nordestino, pois há uma população gigantesca concentrada em uma area pequena. E ainda há a captação e o tratamento de esgoto não apropriados. O problema de abastecimento nas grandes cidades é enorme, obrigando a busca em fontes distantes. É o caso de São Paulo, que se beneficia de uma transposição: o município capta parte de sua água na bacia do rio Piracicaba, por meio do Sistema Cantareira. Pouca gente sabe disso. 



Qual a sua opinião a respeito da transposição do São Francisco? 

O baixo São Francisco pode ser prejudicado? Eu não concordo que o baixo São Francisco foi prejudicado com as usinas da Companhia Elétrica do São Francisco, a Chesf. Pois, com as barragens e, sobretudo, com o reservatório de Sobradinho, o fluxo do rio ficou regularizado. Se houve um efeito deletério foi que a vazão média despejada no mar diminuiu um pouco. Sobradinho é como um grande espelho evaporante, em que 10% da água do São Francisco é perdida pela evaporação. O mar ficou mais salgado, mas não há problema nenhum nisso. Em média, agora, o que será retirado do rio com a transposição é menos de 3% e, para quem está nas margens do baixo São Francisco, essa porcentagem é imperceptível. Sob esse ponto de vista, é uma transposição pequena. Achar que o rio ficará “anêmico” é uma teoria falsa. 



Do ponto de vista econômico, vale a pena esse investimento? 

Alguns especialistas dizem que há água suficiente para uso local no semiárido e que a transposição é desnecessária. Essa tese pode ou não ser verdadeira. Para as pessoas beber, tomar banho ou cozinhar, sim, há água. Não é necessário importar nem uma gota sequer: basta instalar cisternas ou reservatórios profundos para armazenar o líquido. Agora, se o objetivo for criar atividades econômicas sustentáveis para que as pessoas não vivam apenas do Bolsa Família e sim de outro modelo em que serão produtivas, com indústrias e agricultura, é preciso ter garantia de água. A falta dessa garantia é um fator inibidor ao desenvolvimento econômico de uma região. É nesse sentido que a transposição pode ser um projeto diferenciador. 



Mas quais os aspectos desfavoráveis à transposição? 

Ao contrário do que ocorreu no rio Colorado, nos Estados Unidos, o dimensionamento da obra não foi fruto de demanda quantificada. Faltou o que os americanos chamam de ownership, o direito à água irrigada. Lá, montou-se um esquema para que a operação e a manutenção daquela infraestrutura fossem independentes do governo. E, como dependia dos interessados, funcionou. E isso não foi feito aqui. Outro tema polêmico é a Amazônia. 



O governo está certo em investir na fonte hidrelétrica de energia, a despeito das críticas de conservacionistas aos novos projetos de barragens? 

O que falta nesse debate é a comparação com as alternativas. A pergunta muitas vezes é: o que acontecerá se as usinas forem construídas na Amazônia? Isso nós sabemos. Florestas serão inundadas e populações ribeirinhas, e até indígenas, poderão ter seus estilos de vida modificados. 



Essas coisas parecem boas? 

Em geral, não. Mas a pergunta raras vezes formulada é: o que acontecerá se as usinas não forem construídas na Amazônia? O consumo per capita de energia no Brasil é seis vezes menor que nos Estados Unidos. Isso não quer dizer que devemos atingir o mesmo consumo que os americanos, mas temos de dobrar o nosso para termos um nível de vida no padrão, por exemplo, da Itália. Esse aumento no consumo não é em casa, mas na atividade econômica. Não construir as usinas na Amazônia significa economia menos competitiva, energia mais cara – pois as fontes eólica e solar não são suficientes para atender à demanda –, maior poluição pela queima de combustíveis fósseis e maior risco pelo uso de energia nuclear. O setor energético precisa ponderar os prós e os contras da construção de reservatórios. O certo seria colocá-los em uma balança. De um lado o dano local – corte de vegetação e deslocamento de moradores – e do outro o benefício global – menor emissão de gases que contribuem para o efeito estufa. 



A Agência Nacional de Águas (ANA) tem pouco mais de dez anos. O que mudou na gestão dos recursos hídricos do Brasil? 

Pela ação da ANA, nossos problemas de recursos hídricos estão sendo mitigados, como a seca no Nordeste e a poluição dos centros urbanos. A experiência mais bem-sucedida é o programa piloto de despoluição de bacias hidrográficas, o Prodes, em que o governo federal paga pelos resultados alcançados, isto é, o esgoto efetivamente tratado, não o financiamento da obra ou dos equipamentos. Por outro lado, eu tinha a expectativa de que, após dez anos, nós teríamos um sistema de gestão de recursos hídricos mais capilar, presente em todo o país. E que o sistema de outorga pelo uso da água e o princípio poluidor-pagador – que estabelece a cada empresa um valor de cobrança proporcional à poluição por ela causada – estariam implantados no país todo. Mas esbarramos em várias dificuldades, e a principal é a fragmentação da autoridade nas bacias hidrográficas. A França e os Estados Unidos, cujos rios eram sujos nas décadas de 1960 e 70, tiveram sucesso na implementação efetiva do conceito poluidor-pagador. 



O que, em termos de gestão, de mais efetivo falta ainda ser feito para a conservação dos ecossistemas aquáticos do Brasil? 

Temos de decidir qual caminho filosófico seguiremos. O da lógica ambiental, ou seja, estabelecer padrões de emissão e fiscalizar seu cumprimento, ou o da cobrança pela poluição, que é uma lógica econômica. São duas filosofias: ou você multa a empresa que polui, ou você cobra dela a poluição, o que pesa no bolso da população. Aqui, nós cometemos um erro grave. Hoje, o cidadão que tem esgoto tratado paga mais para a companhia de saneamento. Aplica-se ao esgoto a mesma lógica aplicada à água, e não é assim. Abastecimento de água é um serviço cujo beneficiário é o indivíduo. E coleta e tratamento de esgoto são um serviço cujo beneficiário é a coletividade. O tratamento tarifário de um não pode ser o mesmo do outro. Nós induzimos as pessoas a não pensar no coletivo. E temos de corrigir isso.


Fonte: Planeta Sustentável
http://planetasustentavel.abril.com.br/noticia/ambiente/jerson-kelman-fator-agua-541308.shtml

Um comentário:

PauloAfonso disse...

Interessante entrevista.
Particularmente com relação à transposição do São Francisco, é levantada uma questão importante: o Nordeste pode ter água para as pessoas não morrerem de sede, mas é preciso de água suficiente para que as pessoas deixem de depender do bolsa-família.
Parabéns!