domingo, 15 de novembro de 2009

O PENSAR NO SERTÃO: CULTURA, INDIVÍDUOS E SINGULARIDADES

A seguir reproduzimos texto do Prof. Dr. Luiz Manoel Lopes, do Campus da UFC no Cariri. O mesmo texto foi apresentado na PUC-PR, no dia 06 de novembro de 2009, durante a palestra "A diferença e o conceito de ser-tão", durante o 7o. Encontro Nacional do GT Pensamento Contemporâneo da ANPOF.

Santana do Cariri - Sertão do Ceará. Foto de Johanna Chacon. Novembro de 2009.


O PENSAR NO SERTÃO: CULTURA, INDIVÍDUOS E SINGULARIDADES

Luiz Manoel Lopes
UFC - Campus no Cariri

Tentando apoiar-me em sustentáculos não muito equilibrados, porque remetem sempre à movências ininterruptas e metaestabilidades energéticas. Buscarei expor, através de leituras da díade Deleuze-Guattari elementos que tangem à problemática dos conceitos de cultura, indivíduos e singularidades relacionando-os ao livro escrito por Euclides da Cunha em 1902 cujo título é Os sertões. Tento, nesta breve exposição, apontar para uma política em torno das multiplicidades. Desde já, procurarei imiscuir-me na conjunção filosofia e ciência como modos de pensamentos de extremada importância no que toca às suas usinagens de conceitos e funções. Tanto a filosofia quanto a ciência tem suas aparições em meio a um povo.

Em se tratando de ressaltar o pensamento de Guattari, sobre a relação entre Cultura e singularidades, não seria despropositado dizer que o conceito de cultura, para este pensador, tem um sentido reacionário: a dicotomia culto/inculto soa reacionária aos seus ouvidos. O indivíduo culto é aquele que é formado e, sobretudo aquele que sabe algo sobre as teorias científicas. No entanto, manteremos conforme o dizer de Ilya Prigogine e Isabelle Stenghers, fortes aliados de Deleuze-Guattari, que “a ciência faz da parte do complexo de cultura a partir do qual, em cada geração, os homens tentam encontrar uma forma de coerência intelectual. Ao contrário, esta coerência alimenta em cada época a interpretação das teorias científicas, determina a ressonância que suscitam, influencia as concepções que os cientistas se fazem do balanço da sua ciência e das vias segundo as quais devem orientar suas investigações. Para lá do seu conteúdo teórico, dizem os dos pensadores, a metamorfose da ciência que vamos descrever renova a nossa concepção das relações dos homens com a natureza e a ciência como prática cultural” (PRIGOGINE e STENGERS, 1984).

O pensamento de Guattari vai neste sentido: a Cultura é reacionária enquanto se pensar em cultivar de modo massivo um grande números de indivíduos, sem se apreciar a diferença entre individualidade e singularidade. Vivemos numa cultura em que os indivíduos não possuem filosoficamente suas singularidades, sendo preciso modos de pensar, tanto filosóficos quanto científicos, que permitam aos indivíduos gerirem seus processos de singularização. Tudo isto ressoa como modo de resistência a este modelo de produção de subjetividade social. Consideramos que para sairmos desta fabrica de produção de subjetividade, em que os indivíduos ficam alienados de suas singularidades, se faz necessário pensar a metamorfose da ciência e apreciar como a mesma foi nobre e fortemente influenciadas por aportes filosóficos.

Neste sentido, é preciso repensarmos as relações entre Cultura, indivíduos e singularidades a partir das relações que a ciência contemporânea possui com a natureza. Na complexidade desta análise, o ponto de partida será afirmação do filósofo Henri Bergson: “O tempo é invenção, ou não é absolutamente nada”. Trata-se de pensar a história físico-quimica do universo, mas também a experiência singular da duração.

“Mas a ciência de hoje não é mais a ciência clássica. Os conceitos básicos que fundamentavam “a concepção clássica do mundo” encontraram hoje seus limites num progresso teórico que não hesitamos em chamar de metamorfose. A própria ambição de reduzir o conjunto de processos naturais a um pequeno número de leis foi abandonada. As ciências da natureza descrevem, de ora em diante, um universo fragmentado, rico de diversidades qualitativas e de surpresas potenciais. Descobrimos que o diálogo racional com a natureza não constitui mais o sobrevôo desencantado dum mundo lunar, mas a exploração, sempre local e efetiva, duma natureza complexa e múltipla”. (PRIGOGINE e STENGERS, 1984: p. 5)

A metamorfose da ciência resulta de uma nova concepção do tempo: a ciência reencontra o tempo e contribui para percebermos que a natureza deixou de ser um autômato, um simples mecanismo, passando a ser considerada como plano de variações intensivas e metaestabilidades. “... pois a natureza à qual a nossa ciência se dirige hoje não é mais aquela que um tempo invariante chegava para descrever, nem tampouco, aquela cuja evolução era definida por uma função monótona, crescente e decrescente. Doravante exploramos uma natureza de evoluções múltiplas e divergentes que nos faz pensar não num tempo à custa dos outros, mas na coexistência de tempos irredutivelmente diferentes e articulados”.

Durante muito tempo, o caráter absoluto dos enunciados científicos foi considerado como um sinal de racionalidade universal; neste caso, a universalidade seria negação e superação de toda particularidade cultural. Pensamos que a nossa ciência se abrirá ao universal logo que cesse de negar, de se pretender estranha às preocupações e interrogações das sociedades no seios das quais se desenvolve, no momento em que for, finalmente, capaz de um diálogo com a natureza, da qual saberá apreciar os múltiplos encantos, e , com os homens de todas as culturas, cujas questões ele saberá no futuro respeitar.

A conjunção entre filosofia e ciência faz sobressair o modo como à primeira passa a ser pensada no Brasil. Tudo isto requer que saibamos alguma coisa a mais sobre nossas regiões, sobre as peculiaridades que nos constituem enquanto entes singulares e coletivos. O que somos hoje no Brasil em cada região que habitamos? O que a Cultura, atual do Brasil, nos impele a saber sobre o que somos, sobre o que ainda não somos, sobre o que poderemos ser? O que sabemos, por exemplo, do conceito de ser-tão? O que sabemos daquilo que somos e temos quando habitamos o ser-tão e vivemos a sua cultura? Tudo isto é para sabermos, como nesta Cultura, podemos compreender como os indivíduos podem coexistir e ter a posse filosófica de suas singularidades, das singularidades que os constituem.

Os sertões quer dizer variações climáticas e de temperaturas e, o pensamento do sertanejo varia em consonância com a natureza. Quantos sertões existem? Neste ponto, aproveitamos aqui para dizermos da riqueza de nossa literatura e quanto podemos intensificar nossa pratica filosófica ao apreciarmos o que há de pensamento filosófico em livros como Os Sertões de Euclides da Cunha.
No capítulo V desse belíssimo livro, o qual muitos filósofos não leram, aparecem considerações filosóficas que suma importância. Leiamos este fabuloso capítulo V.

Uma categoria geográfica que Hegel não citou

Resumamos, enfeixemos estas linhas esparsas.

Hegel delineou três categorias geográficas como elementos fundamentais colaborando com outros no reagir sobre o homem, criando diferenciações étnicas:

As estepes de vegetação tolhiça, ou vastas planícies áridas; os vales férteis, profusamente irrigados; os litorais e as ilhas.

Os llanos da Venezuela: as savanas que alargam o vale do Mississippi, as pampas desmedidas e o próprio Atacama desatado sobre os Andes — vasto terraço onde vagueiam dunas — inscrevem-se rigorosamente nos primeiros.

Em que pese aos estios longos, às trombas formidáveis de areia, e ao saltear de súbitas inundações não se incompatibilizam com a vida.

Mas não fincam o homem à terra.

A sua flora rudimentar, de gramíneas e ciperáceas, reviçando vigorosa nas quadras pluviosas, é um incentivo à vida pastoril, às sociedades errantes dos pegureiros, passando móveis, num constante armar e desarmar de tendas, por aqueles plainos — rápidas, dispersas aos primeiros fulgores do verão.

Não atraem. Patenteiam sempre o mesmo cenário de uma monotonia acabrunhadora, com a variante única da cor: um oceano imóvel, sem vagas e sem praias.

Têm a força centrífuga do deserto: repelem; desunem; dispersam. Não se podem ligar à humanidade pelo vínculo nupcial do sulco dos arados. São um isolador étnico como as cordilheiras e o mar, ou as estepes da Mongólia, varejadas, em corridas doudas, pelas catervas turbulentas dos tártaros errabundos.

Aos sertões do Norte, porém, que à primeira vista se lhes equiparam, falta um lugar no quadro do pensador germânico.

Ao atravessá-los no estio, crê-se que entram, de molde, naquela primeira subdivisão; ao atravessá-los no inverno, acredita-se que são parte essencial da segunda.
Barbaramente estéreis; maravilhosamente exuberantes...

Na plenitude das secas são positivamente o deserto. Mas quando estas não se prolongam ao ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem luta como as árvores, com as reservas armazenadas nos dias de abastança e, neste combate feroz, anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão das chapadas, a natureza não o abandona de todo. Ampara-o muito além das horas de desesperança, que acompanham o esgotamento das últimas cacimbas.

Ao sobrevir das chuvas, a terra, como vimos, transfigura-se em mutações fantásticas, contrastando com a desolação anterior. Os vales secos fazem-se rios. Insulam-se os cômoros escalvados, repentinamente verdejantes. A vegetação recama de flores, cobrindo-os, os grotões escancelados, e disfarça a dureza das barrancas, e arredonda em colinas os acervos de blocos disjungidos — de sorte que as chapadas grandes, intermeadas de convales, se ligam em curvas mais suaves aos tabuleiros altos. Cai a temperatura. Com o desaparecer das soalheiras anula-se a secura anormal dos ares. Novos tons na paisagem: a transparência do espaço salienta as linhas mais ligeiras, em todas as variantes da forma e da cor.

Dilatam-se os horizontes. O firmamento, sem o azul carregado dos desertos, alteia-se, mais profundo, ante o expandir revivescente da terra.

E o sertão é um vale fértil. É um pomar vastíssimo, sem dono”.

Euclides da Cunha ressalta aspectos que contribuem para as diferenciações étnicas e para a economia da terra. Mas, queremos ressaltar aspectos que remetem para um reencontro com a natureza, com a physis, um reencontro com o tempo como invenção, criação de formas, elaboração continua do absolutamente novo. A composição desses elementos podem contribuir para a elaboração de novos modos de sociabilidades e de pensamentos ( filosóficos, científicos e artísticos) que sejam mais condizentes com os nossos problemas regionais e, também um meio de valorizar os potenciais literários e poéticos existentes nossos territórios.

A ciência sendo uma expressão da cultura, já manifesta uma expressão de reencontro com a natureza, com o tempo redescoberto. Mediante tudo isto, agora somente nos resta dinamizar e promover a profusão desses novos modos de pensar e sentir e, para tal teremos que trabalhar muito mais. No entanto, este trabalho não será somente o impor sobre a matéria uma determinada forma, mas sim de encontrar no seio da matéria as singularidades. Trata-se de outra cultura onde se enxerga as multiplicidades, as virtualidades. Do mesmo modo, como não podemos pensar as populações, sem as suas culturas, sem os seus climas, sem os seus sertões.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CUNHA, Euclides . Os sertões. Rio de Janeiro: Editora Record, 1998.
DELEUZE, G., GUATTARI,i F. O que é a filosofia? 2ª edição. Trad. Bento Prado Jr e Alberto A. Muñoz. São paulo: Ed. 34, 1997.
PRIGOGINE, Ilya & STENGERS, Isabelle. A Nova Aliança - metamorfose da Ciência. Brasília: UNB, 1984.

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