Matéria especial do Caderno Regional do Jornal Diário do Nordeste deste domingo, 16 de agosto de 2009, traz um belo relato sobre a Expedição Imperial constituída há 150 anos para conhecer os Sertões do Ceará. Grande parte das informações é fruto do trabalho de pesquisadores do Departamento de História da UFC. Vale a pena a leitura!
Abraço e boa semana a todos!
Suely
150 ANOS DE EXPEDIÇÃO - Comissão Científica do Império descobriu os sertões
KAROLINE VIANA
REPÓRTER
Fortaleza - "Vieram os senhores a este nosso Brasil". No registro do diário do botânico Francisco Freire Alemão, assim fala um homem da então Vila de Aracati sobre um dos projetos mais ambiciosos do Brasil Imperial. Há 150 anos, os principais representantes da elite intelectual brasileira empreenderam viagem exploratória de dois anos e cinco meses à província do Ceará. Era a Comissão Científica de Exploração, designada oficialmente como Imperial Comissão Científica e Comissão Exploradora das Províncias do Norte.
Com metas grandiosas e produtora de ampla pesquisa em diversas áreas sobre o Estado do Ceará, uma série de constrangimentos de ordem política, cultural e de financiamento fez com que o projeto não tivesse a continuidade e a abrangência esperadas. Apesar disso, a viagem pelos rincões cearenses é relevante para entender a história do pensamento social vigente, além de aspectos naturais e humanos do Ceará naquele período.
Viagens exploratórias
Com metas grandiosas e produtora de ampla pesquisa em diversas áreas sobre o Estado do Ceará, uma série de constrangimentos de ordem política, cultural e de financiamento fez com que o projeto não tivesse a continuidade e a abrangência esperadas. Apesar disso, a viagem pelos rincões cearenses é relevante para entender a história do pensamento social vigente, além de aspectos naturais e humanos do Ceará naquele período.
Viagens exploratórias
A realização de expedições e o interesse em colher informações sobre recursos naturais e populações indígenas permeiam a ocupação do "novo mundo". No Brasil, a chegada da Família Real portuguesa abriu caminho para a realização de expedições estrangeiras, apoiadas pelo Estado.
"Com a vinda de D. João VI e da Corte Portuguesa para o Brasil, em 1808, houve a liberação do acesso de naturalistas ao amplo e desconhecido território brasileiro, após séculos de repressão e segredo das autoridades coloniais, desejosas de resguardar os seus recursos naturais da cobiça dos países mais desenvolvidos", aponta o pesquisador cearense Melquíades Pinto Paiva, autor do livro "Os Naturalistas e o Ceará".
A primazia da razão e a possibilidade do conhecimento do outro, defendidas pelo Iluminismo, animavam a formação de instituições de cultivo das ciências, da cultura e das artes nos principais centros europeus, tendência seguida pelo Brasil para se inserir na comunidade internacional.
Em 1856, foi a partir do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), então a principal instituição científica do Brasil, que surgiu a ideia de enviar às províncias do Norte a primeira expedição formada apenas por brasileiros. Defendia-se que muitas das impressões dos estrangeiros eram baseadas em visões pré-concebidas de uma "terra exótica". Procurava-se, assim, sair da posição de fornecedor de exemplares a serem pesquisados para a de produtor de conhecimento. "Com a criação da Comissão Científica, o governo imperial tentou alcançar os seguintes objetivos: provar a capacidade de organizar e manter em ação uma expedição científica constituída somente por naturalistas brasileiros; mostrar ao mundo, dito civilizado, o apreço institucional e oficial pelo desenvolvimento das ciências; direcionar esforços no sentido de melhor conhecer regiões do Brasil de pouco interesse dos naturalistas estrangeiros que nos visitavam e conduziam suas expedições; melhor conhecer a natureza e os recursos das províncias do Nordeste do Brasil, a começar pelo Ceará", comenta Melquíades Pinto Paiva.
Patrocinada pelo imperador Dom Pedro II, a Comissão tinha uma meta ambiciosa: ao colher informações sobre fauna, flora, minerais, geografia, além dos usos e costumes, a ideia da Comissão era promover a integração regional do País e a promoção de uma identidade nacional, além de buscar potenciais recursos naturais que pudessem ser explorados, como metais preciosos.
A Comissão Científica era dividida em cinco seções, cada uma chefiada por um associado do IHGB: seção Botânica, comandada pelo botânico Francisco Freire Alemão (presidente da Comissão); seção Geológica e Mineralógica, com o físico Guilherme Schüch de Capanema; seção Zoológica, com o naturalista Manoel Ferreira Lagos; seção Astronômica e Geográfica, chefiada pelo matemático Giacomo Raja Gabaglia; e a seção Etnográfica e de Narrativa de Viagem, a cargo do romancista e historiador Antônio Gonçalves Dias. Acompanhava a viagem o tenente da Marinha, José dos Reis Carvalho. Discípulo do pintor francês Jean Baptiste Debret, era o desenhista oficial da expedição, tendo produzido desenhos e aquarelas (fotos) da natureza e da arquitetura da província.
Somente os preparativos para a expedição duraram três anos. Gonçalves Dias e Raja Gabaglia viajaram à Europa para adquirir equipamentos para a viagem, como material de acampamento, medicamentos, equipamentos de precisão, microscópios e até câmeras fotográficas. A Comissão foi a primeira no Brasil a fazer registros fotográficos, mas que se perderam no naufrágio do Iate Palpite. Foi adquirida uma biblioteca de cerca de mil volumes inéditos no País para servir de pesquisa aos "científicos", como eram chamados os membros da Comissão imperial.
Percalços e críticas
A iniciativa, no entanto, ficou limitada ao Ceará. A passagem da Comissão Científica pela província foi marcada por tensões e conflitos. A imprensa da época apelidou o empreendimento de nomes como "Comissão das Borboletas" ou "Comissão Defloradora".
Incidentes envolvendo ajudantes da Comissão, problemas ligados às especificidades da região e até a tentativa frustrada de aclimatação de 14 camelos para realizar a travessia eram muito noticiados. As mudanças políticas nos gabinetes imperiais e a Guerra do Paraguai, na qual o Brasil se envolveu militarmente, implicaram na diminuição dos orçamentos e da atenção dispensada à Comissão Científica.
A viagem gerou uma vasta documentação, como relatórios, diário de viagem, apontamentos sobre a seca, estudos botânicos e vários outros temas, além de objetos coletados no local. O legado concentra-se em instituições do Rio de Janeiro, como o IHGB e o Museu Histórico Nacional (MHN). No Ceará, algumas das aquarelas de Reis Carvalho podem ser vistas no Museu do Crato. O Museu do Ceará lançou, recentemente, documentação inédita sobre a expedição, com escritos de alguns dos membros da Comissão Científica.
Mais informações
Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC) - (85) 3366.7741
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=661797
PESQUISADORES NO SERTÃO - A Comissão e a seca no Ceará
Diferente dos relatos sobre a seca, os membros da Comissão encontraram no Ceará um outro cenário
KÊNIA SOUSA RIOS*
ESPECIAL PARA REGIONAL
"Nas instruções para a Comissão, a questão da seca aparecia como coadjuvante". Kênia Sousa Rios, historiadora
A chegada da Comissão Científica de 1859 aconteceu junto com o reverso da estação climática. Está registrado em seus relatórios de 1862 que "uma seca de mais de cinco meses trazia em sustos os habitantes da Província, pois que o inverno do ano anterior tinha sido escasso, e as fracas chuvas do mês de agosto haviam sido insuficientes para a criação de forragens. pôde assistir ao magnífico espetáculo da transformação dos campos e do aspecto da natureza da Província, quando depois de aturada a seca sobrevêm as primeiras águas. Ao terreno solto, desolado e no parecer infrutífero, dos arredores da Fortaleza, sucedeu em poucos dias, e como por encanto, uma vegetação virente e luxuriante". Mais do que as marcas de uma catástrofe climatérica, os membros da Comissão Científica de 1859 testemunharam a abundância de uma terra fértil e mal administrada.
Tudo indica que um dos principais motivos da vinda da Comissão Científica ao Ceará era a possibilidade de encontrar metais preciosos nas terras de cá. Desse modo, adverte Renato Braga, os trabalhos da sessão presidida pelo Dr. Capanema, ou seja, a sessão geológica e mineralógica, gestavam as maiores expectativas, pois circulava a notícia de que nas terras cearenses "o povo crê descobrir vestígios de minas em cada montanha, vê ouro em qualquer montão de tauá amarelo, ouve roncos nas serras em certas estações do ano e logo após observa os cimos que se inflamam derramando ao longe um cheiro bem caracterizado de enxofre". O cheiro de enxofre significava, para os cientistas, a possível existência de metais preciosos. Restava, aos enviados do Império, descobrir a veracidade do tema em questão.
A vinda da Comissão Científica decretava a definitiva integração da província do Ceará ao projeto de constituição da nação brasileira. Afinal, o Ceará, entre outras províncias do Norte, fazia parte do Império desconhecido e, por isso mesmo, arriscamos em dizer, mais temido. A partir de então, o acervo do Museu Nacional abrigaria em suas estufas, estantes, livros e caixotes, os elementos naturais e culturais daquela distante província. Ocuparíamos os mais diferentes verbetes daquela enciclopédica instituição.
As secas no Ceará começavam lentamente a ganhar fôlego nas importantes rodas da capital do Império. A província cearense era assunto considerado e a seca ganharia relevo como problema nacional. Em seu estudo sobre o clima e as secas do Ceará, Thomaz Pompeu de Sousa Brasil ressalta com ares de novidade que, naquela estiagem de 1825, "a mortandade de povo nos centros e nos povoados, mesmo na capital, foi horrível. Todavia nos maiores povoados as vítimas de fome foram raras, porque a alimentação veio de fora da província".
Mas é a partir de 1877 que o tema da seca passa a ser o principal elo de ligação entre a província do Ceará e o governo central. Raja Gabaglia, presidente da seção geológica, somente publicou seu relatório sobre a seca em 1877, ano da famosa intempérie do último quarto do século XIX, quando a seca passa a ser um importante tema para a formação de uma consciência nacional e o problema de uma província se tornava, assim, uma questão de todos os brasileiros. O que aparece sob a forma de ajuda de algumas províncias durante a seca de 1825 se desdobra em discursos e práticas afirmativas da formação de uma consciência nacional durante a seca de 1877.
Na órbita dessa responsabilidade compartilhada entre brasileiros, nos anos de 1877-79 alguns membros da Comissão Científica de 1859 se sentiram impelidos a reordenar algumas de suas principais observações sobre a seca e as possibilidades de "prosperidade" do território cearense. Naquele período, todos os que podiam colaborar com a nação deveriam fazê-lo.
Em 1859, dentre as muitas instruções definidas para cada seção, a seca aparecia como elemento coadjuvante e somente em seu artigo IX é que a sessão geológica e mineralógica cita algum empenho dos responsáveis para resolver os problemas da seca, sugerindo medidas de combate e prevenção às estiagens. Bem anterior, ou melhor, em seus artigos II e III, a referida seção define orientações que se referem à procura de fontes de minério e metal, o que era certamente mais importante.
Em 1877, o debate sobre a seca colocava a província do Norte como a principal pauta do momento. Fora do país as pesquisas também se avolumavam. Importantes nomes da ciência nacional e internacional publicavam textos avulsos, opúsculos, artigos e também relatórios sobre o tema.
O tão falado ouro da Comissão de 1859 havia sido "esquecido". Até aqui, os interessados já começavam a entender que o tesouro do Ceará era outro e a seca, um dos principais mapas da mina. Entre açudes, poços, reservatórios e transposição de águas, a política nacional e a cearense iam aliando miséria e progresso também.
Alguns membros da Comissão Científica de 1859-61 já observavam em seus relatórios a conclusão do que era realmente precioso para os cearenses. Numa perspectiva em certo sentido diferente dos políticos, a população mais pobre deixava claro que a água era a coisa mais cara por estas bandas. É o próprio Capanema que observa o potencial fértil destas terras que fazem brotar sem grande esforço; falta-lhes somente a água, que, quando chega, "constitui a felicidade da Província".
* Kênia Sousa Rios é doutora em História Social pela PUC-SP e professora do Departamento de História da UFC. Publicou "Campos de Concentração no Ceará: isolamento e poder na seca de 1932", na coleção Outras Histórias (Museu do Ceará).
DESAFIOS DA EXPEDIÇÃO - Tensões do saber acadêmico e popular duração
No Livro "Luzia Homem", o escritor cearense Domingos Olímpio faz uma jocosa referência da passagem da Comissão Científica por um sítio em Ubajara. Ao divisar a noite clara e sem nuvens, os doutores decidem dormir do lado de fora da casa. Mas o dono do sítio adverte que dali a pouco vai cair chuva.
Diante da análise do céu com sofisticados aparelhos, eles constatam não haver evidência de chuva. Assim, os "científicos" ignoram o aviso e armam as redes na varanda. Horas depois, são pegos por uma tempestade que os força a entrar na casa. No dia seguinte, o dono da casa justifica a previsão explicando que, antes de chover, o burro que mantém amarrado na cerca do sítio relincha de determinada maneira, avisando que virá água do céu.
O relato evidencia alguns dos impactos que os membros da Comissão Científica podem ter passado durante a expedição, principalmente no confronto entre um conhecimento empírico das gentes do sertão com o saber acadêmico com que os doutores se armavam para avaliar uma terra para eles estranha. Também se pode pensar no caminho oposto, do espanto e desconfiança diante de homens vistos como estrangeiros.
Olhar para o "outro"
De maneira geral, a questão do estranhamento mútuo perpassava as relações entre observador e observado. Vindos da Corte e acostumados a determinados confortos da vida moderna, os científicos tiveram grandes dificuldades de deslocamento por conta da falta de estradas, numa época anterior às linhas de trem. Muitas vezes, tiveram que atravessar rios e abrir caminho em regiões de mata com o auxílio de facões.
Também há registro de problemas de saúde provocados pela alimentação e pela qualidade da água. O chefe da Comissão detalha em seu diário as diarréias e passamentos por conta da falta de costume com os gêneros alimentícios locais.
Havia ainda o espanto dos cientistas provocado por determinados hábitos, desde a reclusão das mulheres, as disputas políticas e familiares até episódios de violência com escravos. "A mãe da mocinha de quem há pouco falamos era outra fera, essa queimava as escravas metendo-lhes tições acesos pelo rosto e pelo corpo; isto tem já provado cenas desagradáveis, mas não há emenda", relata Freire Alemão em Aracati.
Mas não faltava passagens em que o chefe da Comissão demonstrasse admiração por saberes tradicionais do sertão. "Outra coisa também notável é o reconhecimento do gado, dos animais e mesmo da gente pelo rasto: conhecem pela forma do cano, pelo andar, se está livre, se está peado, se o animal está cansado etc., etc.".
Já os locais questionavam o dispêndio de tantos recursos para dar a conhecer o que aqui eram materiais comuns à região, e com que zelo os sábios recolhiam pedrinhas e matinhos da região. Havia também o temor de que a Comissão estivesse em busca de uma riqueza potencial, o que poderia levar a uma exploração de recursos por parte do Império ou de estrangeiros. "Numa delas [das casas] uma mulher com duas filhas e uma nora se mostraram medrosas dos nossos trabalhos: andamos, diziam elas, medindo o Brasil (Ceará) e procurando as suas minas para o entregar aos ingleses, que vêm escravizar a todo o povo do Ceará".
Apesar da acolhida e da hospitalidade recebidas nas paragens onde passava, a postura dos habitantes da província era de estranheza em relação àqueles homens, vistos como estrangeiros por sua fala culta, modos diferentes e pela parafernália científica que traziam consigo.
Nacionalidade peculiar
A desconfiança era reforçada pela pouca atenção que o poder público dedicava a uma região considerada pobre e atrasada. Sem falar na reação violenta do governo central aos movimentos insurrecionais ocorridos na província durante a primeira metade do século XIX, levando a que os provincianos do Ceará tivessem uma concepção curiosa a respeito da nacionalidade, observada por Freire Alemão em seu diário de viagem.
"É notável como o povo do Ceará entende a sua nacionalidade: para eles o Brasil é o Ceará, os mais provincianos são estrangeiros. (...) O sonho dourado desta gente é a sua independência, é o Ceará formando um Estado. Eles fazem uma idéia tão exagerada de sua província, que no seu entender é em tudo superior a todas as outras; e o seu estribilho é sempre ´Dêem-nos chuvas, dois meses só, todos os anos, que o Ceará não precisa de nada e pode fartar a todo o Império´".
Conforme os registros no diário, os papéis de investigação eram invertidos. A passagem daqueles homens com fala, modos, postura, roupas tão diferentes causava uma onda de curiosidade em muitos lugares. "Tivemos todo este dia a casa cheia de gente, homens e meninos, todos aí entraram muito sem cerimônia, com o chapéu na cabeça, e nos iam logo fazendo questões, mirando e pegando em tudo, a maior parte com a camisa solta sobre as ceroulas, ou calças. Jantamos rodeados deles, pois nem se afastaram, pareciam curiosos até de nos ver comer, até para mudar de roupa, para os não desagradar nos despíamos e vestíamos à vista deles, que achavam a coisa muito natural". (KV)
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=661809
Entrevista
Entre os êxitos e os limites da exploração imperial no Ceará
Responsável pela edição dos diários de Freire Alemão, o historiador Antonio Luiz Macêdo e Silva Filho fala sobre os percalços da Comissão Científica no Ceará e as relações entre saber e poder, que levaram ao fecho melancólico da expedição
"Na cabeça das pessoas, não havia sentido deslocar homens de tão longe se não fosse para surrupiar algo"discursiva sobre o Ceará"
"A Comissão fornece elementos de reflexão porque permite estabelecer uma matriz discursiva sobre o Ceará"
Por que a Comissão Científica se limitou ao Ceará, se era um projeto estratégico para o governo imperial?
Não sei responder com precisão, mas me parece que a Comissão pode servir de paradigma para pensar as relações oblíquas entre saber e poder. A ciência, a despeito de ter um papel plenipotenciário em termos de saber racional, ainda estava muito atrelada aos reveses do jogo político. Isso poderia ajudar a intuir o fecho melancólico da Comissão. No fim das contas, a própria percepção do que seria o papel estratégico dessa Comissão Científica acabou sofrendo uma série de deslocamentos e perdeu o espaço de legitimidade, o que tinha a ver com a mudança nos gabinetes imperiais. Muito do que se de discutia como fundamental em termos de uma iniciativa como esta, inclusive para pensar uma espécie de novo lugar para o Brasil no concerto da comunidade científica internacional, foi minado não só pelas divergências partidárias da oposição, mas também pela passagem atribulada que a Comissão Científica teve no Ceará, que tem a ver também com o quadro político local.
Uma das propostas era que a Comissão fosse formada só por brasileiros, porque os "de fora" eram orientados por idéias preconcebidas sobre o Brasil. Mas até que ponto esses exploradores também não traziam esse pensamento?
Antonio Macêdo: O que me parece é que essa vocação de legitimidade é um argumento muito abstrato quando em confronto com a realidade concreta. Para aqueles que nascem num determinado quinhão de terra e têm uma possibilidade de circulação territorial muito restrita, todos os que vêm de fora não são apenas forasteiros, são estrangeiros. Então há uma espécie de choque entre as concepções do que significa o Brasil. Para esses pesquisadores ilustrados, o Brasil está associado a um Estado centralizado e a uma nação que tenta se afirmar no plano internacional, que busca construir um discurso científico próprio.
E qual era a percepção para quem vivia aqui?
Para os do lugar, os cearenses, esses cientistas são os estrangeiros, porque eles vêm com um aparato absolutamente esquisito; falam um português, para os de cá, arrevesado, porque é muito específico e tem a ver com a linguagem científica e técnica. E para aqueles que moram nos rincões mais afastados da província, não há dúvida de que ser brasileiro significava, entre outras coisas, ser do Ceará. Havia essa coincidência estrita: o Brasil se confunde com o Ceará. Daí porque, eles, por não serem cearenses, eram considerados estrangeiros. Não só pela questão da nacionalidade, mas também no sentido de um estranhamento mais radical, no sentido de virem com o propósito de recolher minérios, espécies vegetais, animais que, por serem comuns na região, não tinham importância ou valor específico para aqueles que aqui moravam. Há aí uma espécie de curto-circuito no que diz respeito a ser nacional, ser considerado brasileiro.
As revoltas que ocorreram na primeira metade do século XIX seriam outro fator para entender a animosidade com as iniciativas da Corte?
Antonio Macêdo: Sim, este é outro lastro de que os pesquisadores só se deram conta quando chegaram aqui. Certamente, eles tinham notícia ou algum conhecimento sobre os movimentos insurrecionais em algumas províncias do Norte, mas nada é comparado ao confronto direto com pessoas que lembravam o aspecto sangrento dessas lutas e o ar de extrema desconfiança e ressentimento. Na cabeça das pessoas, marcada pela lembrança de histórias de subjugação, de violência extrema, do exercício do poder pela força e pela brutalidade, não havia sentido deslocar homens de tão longe se não fosse para empreender algum tipo de rapina. Uma maneira de surrupiar algo que de valor ainda temos e que talvez nem saibamos que temos. E da valorização de narrativas um tanto mitológicas, pois se acredita, em cada rincão de terra, haver uma botija enterrada, um tesouro escondido ou uma jazida de minérios. Esse sentido de que esta terra vale muito costuma ser exacerbado quando parece pairar uma ameaça externa sobre a autonomia daqueles que aqui moram.
É possível perceber nos escritos da Comissão um estranhamento mútuo entre os cientistas e a população local. Como podemos pensar esta questão?
Esse estranhamento precisa ser tido na devida conta. Quando me deparo com algo que não me parece familiar, de alguma maneira isso me desperta o interesse para apreendê-lo. O estranhamento é uma condição fundamental para o conhecimento. A questão é que, ao longo dos reveses vividos pela Comissão, o estranhamento se opera de tal maneira a impossibilitar o vislumbre do outro e não consegue apreender o significado de uma prática cultural. Uma das coisas interessantes é pensar que esse estranhamento, para pessoas muito argutas como o Freire Alemão, ocorreu em mão dupla. Havia o estranhamento dos membros da Comissão em relação a uma série de hábitos, mas era um estranhamento que tendia a ser domesticado por um olhar etnográfico e por um certo senso de complacência em relação a populações tidas como mais atrasadas. Mas o que o surpreendeu foi o estranhamento daqueles que aqui residiam. Os pesquisadores que vinham para medir, pesquisar, descrever, enfim, observar os costumes locais foram muitas vezes alçados à condição de observados. Havia uma centelha de curiosidade dos que residiam nos rincões do Ceará sobre, afinal, para que esses homens se deram ao trabalho de vir aqui? A minha pergunta, para a qual eu não tenho resposta, é saber se eles conseguiram sair do pasmo puro e simples para lançar pontes interpretativas em relação ao outro. Parece-me que houve dificuldades para fazer isso, para entender a maneira como a dinâmica local funcionava, que também tinha a ver com os percalços da Comissão durante a viagem.
Na apresentação para a primeira parte do diário de Freire Alemão, você lembra que a última seca ocorreu em 1845. Como a seca aparece nas pesquisas da Comissão Científica?
Bom, aparece nos escritos meio que estabelecendo uma ponte crítica com um discurso alarmista que começou a se construir em torno da calamidade da seca no Ceará. Há uma tendência a minimizar os efeitos da seca por parte de alguns membros da Comissão. O que se percebe é um discurso que tenta desinvestir o teor da calamidade que os períodos de estiagem pareciam ter. Inclusive porque chegaram num momento em que não houve seca, vários membros dessa Comissão tendiam a minimizar o que seriam os efeitos catastróficos dela. Este foi inclusive um dos pontos que geraram maior divergência com a intelectualidade local. E aí, outra vez, entra em discussão aquilo que mencionávamos sobre o que significa uma fala de saber autorizado. É uma coisa que se percebe no Guilherme Capanema, que se preocupou muito com a questão das secas e que propôs soluções que, aos nossos olhos, poderiam parecer risíveis, mas que eram atravessadas por um espírito científico no sentido mais rigoroso da palavra, no século XIX. Por exemplo, a importação de dromedários do norte da África e aclimatá-los ao Ceará. Porque, segundo ele, o maior problema quando se deflagrava uma seca não era só a escassez de recursos hídricos, mas a dificuldade de vencer as distâncias. E na medida em que camelos e dromedários podiam passar dias sem precisar de água, dariam, pelo menos, uma certa estabilidade nos fluxos. Obviamente isso foi tomado à chacota por muita gente, argumentando que era uma solução esdrúxula.
A viagem feita pela Comissão Científica gerou uma vasta produção: diários de viagem, pesquisas, produção iconográfica. Como você avalia a pesquisa realizada posteriormente sobre os trabalhos da Comissão?
Talvez a grande dificuldade seja dar a esses estudos sobre a Comissão Científica um tom mais sistemático, isto é, pensar de maneira integrada o que foi o resultado dos estudos e pesquisas desses homens. A Comissão era formada por cinco seções, então ela abrangia um leque enorme de campos de saber. É um desafio grande para aqueles que querem construir uma reflexão consequente e mais articulada sobre o que foi o saldo dessa Comissão, os seus limites mas também o êxito de alguns dos seus empreendimentos.
Esse descompasso seria o motivador da pouca quantidade de pesquisas diante da potencialidade do legado da Comissão?
Eu acho que sim. A largueza do que foi projetado e, em certa medida, empreendido é tamanha que inibe o pesquisador específico, o intelectual de um campo de saber mais recortado. Então seria importante tentar estabelecer um espírito de colaboração entre pesquisadores de áreas diferenciadas, de tal maneira que venha a constituir um horizonte de reflexão mais rico, menos restrito ou até menos assinalado pelo limite da cognição de cada área. Eu acho que esta seria uma das maneiras de driblar a enorme dificuldade que se apresenta e tentar romper com esse silêncio estranho que vem se propagando há muito tempo sobre o tema. Mas trabalhos como este, de pensar articuladamente as dimensões diversas dessa comissão, não só o enfrentamento do que seriam forças políticas ligadas à Corte imperial e aquelas frações de mandatários locais, o que seria um ponto, mas também pensar essa articulação entre saber e poder no decorrer do século XIX.
Por que o Ceará foi escolhido para iniciar a expedição?
Havia a possibilidade de a Comissão ir inicialmente ou a Mato Grosso ou a Goiás, utilizando o curso de rios que penetravam o interior do território brasileiro. Escolheu-se o Ceará pelo fato de que já havia uma narrativa de longa data sobre a potencialidade de recursos minerais e vegetais, então é um fator que pesa. A partir disso, é possível pensar as convergências entre o saber erudito e o saber de matriz popular. Houve uma ressonância muito razoável da idéia de que havia aqui jazidas de minerais preciosos, inclusive nas instruções para a Comissão. Um dos pontos claros desse documento é averiguar se há fontes de metais preciosos nas serras do Araripe e da Ibiapaba, como há muito tempo a tradição preconizava sobre o assunto.
Essa suspeita teria pesado na escolha do Ceará?
Eu acho que este poderia ser um dos fatores que ajudaram a estabelecer uma primazia do Ceará em relação a outras províncias. Um outro ponto é o fato de que, em termos de ocupação da Colônia, esta era uma capitania antiga. E quando o Brasil se torna independente, é um dos locais que já apresentava um povoamento razoavelmente antigo, pelo menos desde o último quarto do século XVII, mas que ainda não havia sido explorado de maneira sistemática. Um outro ponto tem a ver com a acessibilidade marítima. Não sei se algum pesquisador já defendeu isso, mas o fato de que havia uma costa muito generosa e extensa, que em pontos diversos permitia o atracamento, facilitaria o traslado não só dos membros da Comissão como dos equipamentos científicos trazidos por eles. Todos estes pontos ajudariam a perceber o primado que o Ceará pode vir a ter tido.
De que forma o legado da Comissão pode ajudar a entender o Ceará naquele período?
Antonio Macêdo: Eu acho que ela fornece elementos de reflexão para a história social e cultural porque permite estabelecer uma matriz discursiva de compreensão sobre o Ceará que é feita de fora dele, mas não pura e simplesmente por aqueles que estão confortavelmente instalados na Corte.
De que maneira?
A documentação produzida pelos membros da Comissão é relevante para entender o Ceará do século XIX porque, entre outras razões, é produzida por homens que se desinstalaram dos locais de saber. Isso me parece muito importante destacar. Eles, a exemplo do que se pensava em termos de ciência natural desde a segunda metade do século XVIII e durante o século XIX, tomaram para si este desafio: para entender uma realidade, eu preciso ir até onde ela está. Essa ambição de devassamento, de conhecimento amplo e articulado de uma realidade que me é desconhecida e que precisa justamente do confrontamento dos sentidos, da experiência e da pesquisa "in loco", isso me parece um dos pontos que permitem entender a importância da Comissão para as investigações sobre história do Ceará, do Império brasileiro e da construção do campo científico naquele período. De um ponto de vista mais ampliado, os escritos da Comissão Científica ajudam, portanto, a perceber o entrelaçamento entre gêneros discursivos que hoje a gente, de alguma maneira, colocou em quadrantes mais ou menos estanques e autonomizados. Perceber isso de maneira articulada talvez nos ajude a apreender a riqueza do trabalho da Comissão Científica de Exploração.
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=661810
"A Comissão fornece elementos de reflexão porque permite estabelecer uma matriz discursiva sobre o Ceará"
Por que a Comissão Científica se limitou ao Ceará, se era um projeto estratégico para o governo imperial?
Não sei responder com precisão, mas me parece que a Comissão pode servir de paradigma para pensar as relações oblíquas entre saber e poder. A ciência, a despeito de ter um papel plenipotenciário em termos de saber racional, ainda estava muito atrelada aos reveses do jogo político. Isso poderia ajudar a intuir o fecho melancólico da Comissão. No fim das contas, a própria percepção do que seria o papel estratégico dessa Comissão Científica acabou sofrendo uma série de deslocamentos e perdeu o espaço de legitimidade, o que tinha a ver com a mudança nos gabinetes imperiais. Muito do que se de discutia como fundamental em termos de uma iniciativa como esta, inclusive para pensar uma espécie de novo lugar para o Brasil no concerto da comunidade científica internacional, foi minado não só pelas divergências partidárias da oposição, mas também pela passagem atribulada que a Comissão Científica teve no Ceará, que tem a ver também com o quadro político local.
Uma das propostas era que a Comissão fosse formada só por brasileiros, porque os "de fora" eram orientados por idéias preconcebidas sobre o Brasil. Mas até que ponto esses exploradores também não traziam esse pensamento?
Antonio Macêdo: O que me parece é que essa vocação de legitimidade é um argumento muito abstrato quando em confronto com a realidade concreta. Para aqueles que nascem num determinado quinhão de terra e têm uma possibilidade de circulação territorial muito restrita, todos os que vêm de fora não são apenas forasteiros, são estrangeiros. Então há uma espécie de choque entre as concepções do que significa o Brasil. Para esses pesquisadores ilustrados, o Brasil está associado a um Estado centralizado e a uma nação que tenta se afirmar no plano internacional, que busca construir um discurso científico próprio.
E qual era a percepção para quem vivia aqui?
Para os do lugar, os cearenses, esses cientistas são os estrangeiros, porque eles vêm com um aparato absolutamente esquisito; falam um português, para os de cá, arrevesado, porque é muito específico e tem a ver com a linguagem científica e técnica. E para aqueles que moram nos rincões mais afastados da província, não há dúvida de que ser brasileiro significava, entre outras coisas, ser do Ceará. Havia essa coincidência estrita: o Brasil se confunde com o Ceará. Daí porque, eles, por não serem cearenses, eram considerados estrangeiros. Não só pela questão da nacionalidade, mas também no sentido de um estranhamento mais radical, no sentido de virem com o propósito de recolher minérios, espécies vegetais, animais que, por serem comuns na região, não tinham importância ou valor específico para aqueles que aqui moravam. Há aí uma espécie de curto-circuito no que diz respeito a ser nacional, ser considerado brasileiro.
As revoltas que ocorreram na primeira metade do século XIX seriam outro fator para entender a animosidade com as iniciativas da Corte?
Antonio Macêdo: Sim, este é outro lastro de que os pesquisadores só se deram conta quando chegaram aqui. Certamente, eles tinham notícia ou algum conhecimento sobre os movimentos insurrecionais em algumas províncias do Norte, mas nada é comparado ao confronto direto com pessoas que lembravam o aspecto sangrento dessas lutas e o ar de extrema desconfiança e ressentimento. Na cabeça das pessoas, marcada pela lembrança de histórias de subjugação, de violência extrema, do exercício do poder pela força e pela brutalidade, não havia sentido deslocar homens de tão longe se não fosse para empreender algum tipo de rapina. Uma maneira de surrupiar algo que de valor ainda temos e que talvez nem saibamos que temos. E da valorização de narrativas um tanto mitológicas, pois se acredita, em cada rincão de terra, haver uma botija enterrada, um tesouro escondido ou uma jazida de minérios. Esse sentido de que esta terra vale muito costuma ser exacerbado quando parece pairar uma ameaça externa sobre a autonomia daqueles que aqui moram.
É possível perceber nos escritos da Comissão um estranhamento mútuo entre os cientistas e a população local. Como podemos pensar esta questão?
Esse estranhamento precisa ser tido na devida conta. Quando me deparo com algo que não me parece familiar, de alguma maneira isso me desperta o interesse para apreendê-lo. O estranhamento é uma condição fundamental para o conhecimento. A questão é que, ao longo dos reveses vividos pela Comissão, o estranhamento se opera de tal maneira a impossibilitar o vislumbre do outro e não consegue apreender o significado de uma prática cultural. Uma das coisas interessantes é pensar que esse estranhamento, para pessoas muito argutas como o Freire Alemão, ocorreu em mão dupla. Havia o estranhamento dos membros da Comissão em relação a uma série de hábitos, mas era um estranhamento que tendia a ser domesticado por um olhar etnográfico e por um certo senso de complacência em relação a populações tidas como mais atrasadas. Mas o que o surpreendeu foi o estranhamento daqueles que aqui residiam. Os pesquisadores que vinham para medir, pesquisar, descrever, enfim, observar os costumes locais foram muitas vezes alçados à condição de observados. Havia uma centelha de curiosidade dos que residiam nos rincões do Ceará sobre, afinal, para que esses homens se deram ao trabalho de vir aqui? A minha pergunta, para a qual eu não tenho resposta, é saber se eles conseguiram sair do pasmo puro e simples para lançar pontes interpretativas em relação ao outro. Parece-me que houve dificuldades para fazer isso, para entender a maneira como a dinâmica local funcionava, que também tinha a ver com os percalços da Comissão durante a viagem.
Na apresentação para a primeira parte do diário de Freire Alemão, você lembra que a última seca ocorreu em 1845. Como a seca aparece nas pesquisas da Comissão Científica?
Bom, aparece nos escritos meio que estabelecendo uma ponte crítica com um discurso alarmista que começou a se construir em torno da calamidade da seca no Ceará. Há uma tendência a minimizar os efeitos da seca por parte de alguns membros da Comissão. O que se percebe é um discurso que tenta desinvestir o teor da calamidade que os períodos de estiagem pareciam ter. Inclusive porque chegaram num momento em que não houve seca, vários membros dessa Comissão tendiam a minimizar o que seriam os efeitos catastróficos dela. Este foi inclusive um dos pontos que geraram maior divergência com a intelectualidade local. E aí, outra vez, entra em discussão aquilo que mencionávamos sobre o que significa uma fala de saber autorizado. É uma coisa que se percebe no Guilherme Capanema, que se preocupou muito com a questão das secas e que propôs soluções que, aos nossos olhos, poderiam parecer risíveis, mas que eram atravessadas por um espírito científico no sentido mais rigoroso da palavra, no século XIX. Por exemplo, a importação de dromedários do norte da África e aclimatá-los ao Ceará. Porque, segundo ele, o maior problema quando se deflagrava uma seca não era só a escassez de recursos hídricos, mas a dificuldade de vencer as distâncias. E na medida em que camelos e dromedários podiam passar dias sem precisar de água, dariam, pelo menos, uma certa estabilidade nos fluxos. Obviamente isso foi tomado à chacota por muita gente, argumentando que era uma solução esdrúxula.
A viagem feita pela Comissão Científica gerou uma vasta produção: diários de viagem, pesquisas, produção iconográfica. Como você avalia a pesquisa realizada posteriormente sobre os trabalhos da Comissão?
Talvez a grande dificuldade seja dar a esses estudos sobre a Comissão Científica um tom mais sistemático, isto é, pensar de maneira integrada o que foi o resultado dos estudos e pesquisas desses homens. A Comissão era formada por cinco seções, então ela abrangia um leque enorme de campos de saber. É um desafio grande para aqueles que querem construir uma reflexão consequente e mais articulada sobre o que foi o saldo dessa Comissão, os seus limites mas também o êxito de alguns dos seus empreendimentos.
Esse descompasso seria o motivador da pouca quantidade de pesquisas diante da potencialidade do legado da Comissão?
Eu acho que sim. A largueza do que foi projetado e, em certa medida, empreendido é tamanha que inibe o pesquisador específico, o intelectual de um campo de saber mais recortado. Então seria importante tentar estabelecer um espírito de colaboração entre pesquisadores de áreas diferenciadas, de tal maneira que venha a constituir um horizonte de reflexão mais rico, menos restrito ou até menos assinalado pelo limite da cognição de cada área. Eu acho que esta seria uma das maneiras de driblar a enorme dificuldade que se apresenta e tentar romper com esse silêncio estranho que vem se propagando há muito tempo sobre o tema. Mas trabalhos como este, de pensar articuladamente as dimensões diversas dessa comissão, não só o enfrentamento do que seriam forças políticas ligadas à Corte imperial e aquelas frações de mandatários locais, o que seria um ponto, mas também pensar essa articulação entre saber e poder no decorrer do século XIX.
Por que o Ceará foi escolhido para iniciar a expedição?
Havia a possibilidade de a Comissão ir inicialmente ou a Mato Grosso ou a Goiás, utilizando o curso de rios que penetravam o interior do território brasileiro. Escolheu-se o Ceará pelo fato de que já havia uma narrativa de longa data sobre a potencialidade de recursos minerais e vegetais, então é um fator que pesa. A partir disso, é possível pensar as convergências entre o saber erudito e o saber de matriz popular. Houve uma ressonância muito razoável da idéia de que havia aqui jazidas de minerais preciosos, inclusive nas instruções para a Comissão. Um dos pontos claros desse documento é averiguar se há fontes de metais preciosos nas serras do Araripe e da Ibiapaba, como há muito tempo a tradição preconizava sobre o assunto.
Essa suspeita teria pesado na escolha do Ceará?
Eu acho que este poderia ser um dos fatores que ajudaram a estabelecer uma primazia do Ceará em relação a outras províncias. Um outro ponto é o fato de que, em termos de ocupação da Colônia, esta era uma capitania antiga. E quando o Brasil se torna independente, é um dos locais que já apresentava um povoamento razoavelmente antigo, pelo menos desde o último quarto do século XVII, mas que ainda não havia sido explorado de maneira sistemática. Um outro ponto tem a ver com a acessibilidade marítima. Não sei se algum pesquisador já defendeu isso, mas o fato de que havia uma costa muito generosa e extensa, que em pontos diversos permitia o atracamento, facilitaria o traslado não só dos membros da Comissão como dos equipamentos científicos trazidos por eles. Todos estes pontos ajudariam a perceber o primado que o Ceará pode vir a ter tido.
De que forma o legado da Comissão pode ajudar a entender o Ceará naquele período?
Antonio Macêdo: Eu acho que ela fornece elementos de reflexão para a história social e cultural porque permite estabelecer uma matriz discursiva de compreensão sobre o Ceará que é feita de fora dele, mas não pura e simplesmente por aqueles que estão confortavelmente instalados na Corte.
De que maneira?
A documentação produzida pelos membros da Comissão é relevante para entender o Ceará do século XIX porque, entre outras razões, é produzida por homens que se desinstalaram dos locais de saber. Isso me parece muito importante destacar. Eles, a exemplo do que se pensava em termos de ciência natural desde a segunda metade do século XVIII e durante o século XIX, tomaram para si este desafio: para entender uma realidade, eu preciso ir até onde ela está. Essa ambição de devassamento, de conhecimento amplo e articulado de uma realidade que me é desconhecida e que precisa justamente do confrontamento dos sentidos, da experiência e da pesquisa "in loco", isso me parece um dos pontos que permitem entender a importância da Comissão para as investigações sobre história do Ceará, do Império brasileiro e da construção do campo científico naquele período. De um ponto de vista mais ampliado, os escritos da Comissão Científica ajudam, portanto, a perceber o entrelaçamento entre gêneros discursivos que hoje a gente, de alguma maneira, colocou em quadrantes mais ou menos estanques e autonomizados. Perceber isso de maneira articulada talvez nos ajude a apreender a riqueza do trabalho da Comissão Científica de Exploração.
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=661810
COMISSÃO CIENTÍFICA - Pesquisas trazem nova abordagem sobre a expedição
Legado da Comissão permite produzir diversos estudos, como o do historiador Paulo César dos Santos, na UFC
Fortaleza - Após 150 anos da vinda da Comissão Científica para o Ceará, ainda são poucas as pesquisas sobre o tema. A perda de parte dos registros feitos durante os deslocamentos pela província, a publicação restrita do que restou e a concentração do legado em instituições do Rio de Janeiro, onde ficava a sede do Império, são alguns dos fatores que dificultam a realização de trabalhos que aprofundem o papel da Comissão Científica.
Foi a partir da publicação de parte dos diários de viagem de Francisco Freire Alemão que o historiador Paulo César dos Santos decidiu fazer a dissertação de mestrado "Inventariando a Nação: o botânico Freire Alemão e a Comissão Científica de 1859 no Ceará", que está em fase de pesquisa no Mestrado em História da Universidade Federal do Ceará (UFC).
"Durante a graduação, fui bolsista do Museu do Ceará e integrei a equipe que fez a transcrição do diário. E de tanto ler, digitar, revisar esses escritos que decidi pesquisar a Comissão Científica e o botânico Freire Alemão, a partir de duas questões: a escolha do Ceará para iniciar os trabalhos da Comissão e a questão das lendas sobre ouro e outros minerais preciosos na província", conta.
O historiador lembra que o Brasil vivia um momento heterogêneo no século XIX, pois era a única monarquia da América e via tanto os países vizinhos quanto as próprias províncias, em especial as do Norte, travando insurreições de cunho republicano. Por conta disso, a Comissão tinha um papel relevante de promover a integração nacional a partir do conhecimento das áreas mais distantes.
"Durante a pesquisa para o projeto, eu me questionava a escolha do Ceará, se havia a opção de ir para a região de fronteira ou até para outras províncias. Quando a Comissão foi criada, não se sabia para onde eles iriam. Mas um dos fatores para definir o Ceará não foi a seca, e sim as lendas sobre existência de ouro aqui".
Mito do ouro
Apesar de não ser possível precisar a origem desse imaginário sobre o "El Dorado" cearense, Paulo César dos Santos disse que os mitos populares sobre a existência de metais preciosos começam a aparecer após a invasão holandesa, no século XVII. Algumas histórias da época chegam a dizer que, ao arrancar o capim da terra, pepitas de ouro vinham enroscadas nas raízes. Outras dão conta de pessoas que jogavam azougue, um material magnético, dentro das cavernas, para que estas arrancassem o ouro das paredes.
"Há um documento do século XVIII, chamado Mapa do Novo Descoberto, em que o autor, padre Francisco Teles de Lima, coletou diversas lendas sobre o ouro na região. E os cientistas que fizeram parte da Comissão tiveram acesso a esse documento, que está no IHGB. Então foi um documento muito importante para trazer a Comissão para cá", analisa.
Outra evidência apontada pelo historiador é que nas seções de trabalho, produzidas após a expedição, o tema seca aparece em apenas em dois tópicos, um na Seção Geográfica e outro na Seção Geológica. Já a questão do ouro permeia todos os trabalhos dos pesquisadores da Comissão. Além disso, havia no Museu Nacional uma coleção de minerais encontrados no Ceará, com amostras de salitre, ouro e prata, que reforçavam a possibilidade das lendas serem reais. "Só não se sabia em que quantidade", pondera.
O mito sobre a riqueza enterrada no chão também reforça a desconfiança dos habitantes locais em relação aos intentos da Comissão Científica, mas ao mesmo tempo faz com que o imaginário sobre a existência de riqueza mineral seja reforçada. Para o pesquisador, na medida em que esses e outros cientistas são deslocados com base nos relatos e lendas criados aqui, a presença desses pesquisadores dá para os que aqui vivem a certeza de que realmente há riqueza, reforçando esse mito do ouro, seja enterrado nas igrejas dos jesuítas ou como um recurso natural local.
"Os próprios intelectuais locais ajudavam a reforçar essa crença, mesmo sabendo que não existia. Tristão de Alencar Araripe, quando escreve a ´História da Província do Ceará´ em 1867, diz que o solo do Ceará é rico em prata e ouro. O senador Thomaz Pompeu de Sousa Brasil , no livro ´Dicionário Topográfico do Ceará´, de 1861, fala a mesma coisa no verbete sobre minerais. Acredito que era uma estratégia para tentar atrair a atenção do governo central para o Ceará", opina.
O historiador lembra uma carta em que Gonçalves Dias reclama para Capanema tanto das pressões internas quanto externas para que a Comissão Científica encontrasse os metais preciosos. E quando não descobriram o ouro, começaram as críticas de que os pesquisadores apenas coletavam coisas de pouca importância.
Outro tema trabalhado na dissertação é a relação desenvolvida entre os intelectuais locais e os chefes da Comissão, numa contribuição de mão dupla. "João Brígido, Pedro Théberge, Senador Pompeu forneceram livros, jornais da época, mapas, estudos, foram altamente participantes. O livro ´Lendas e Canções Populares´, do Juvenal Galeno, foi escrito por sugestão dos Gonçalves Dias", diz.
Um dos principais desafios para pesquisar um tema como a Comissão Científica, que reúne conhecimentos e questões das mais variadas áreas do saber, é tratá-lo a partir de disciplinas científicas que, hoje, são bem delimitadas. No caso do trabalho de Paulo César, a opção foi não tentar dar conta de todos esses conhecimentos, e sim pensar a historicidade deles.
"Eu tento trabalhar a importância dessas ciências no século XIX, o papel exercido por cada disciplina. Apenas na Botânica é que estou me aprofundando mais por conta do Freire Alemão, para tentar entender as matrizes do pensamento, quais as referências e como isso aparece nos escritos que ele produziu para a Comissão Científica".
Para ele, é preciso considerar que a passagem dos pesquisadores pelo Ceará foi de grande importância para criar uma ciência nacional, apesar de ter caído no esquecimento com a repercussão negativa dos trabalhos dos pesquisadores e a atenção voltada para o esforço de guerra no Paraguai.
"Em termos de pesquisas, hoje, ainda há muito a fazer. Mas é um tema muito rico, qualquer trabalho que traga a Comissão para o debate é importante, inclusive com novas abordagens", afirma Paulo César. (KV)
REIS CARVALHO
O Ceará por meio das imagens
Fortaleza Além dos estudos produzidos pelos chefes de seções, outra documentação importante para entender a Comissão e sua passagem pelo Ceará são os desenhos e pinturas produzidos pelo pintor José dos Reis Carvalho. Ele viajou com a Comissão produzindo imagens de habitações, moinhos, paisagens e gentes do sertão.
"O que se identifica no século XIX é que, à medida que a Europa e, no caso do Brasil, a Corte vai conhecer novos mundos, há duas documentações importantes: os relatos dos viajantes e o registro visual com as pinturas. Para além da questão etnográfica, o registro por texto e imagem tem um certo sentido de domínio das nações civilizadas sobre as colonizadas", explica Meize Regina de Lucena Lucas, professora do Departamento de História da UFC.
Segundo ela, o olhar dos pintores históricos do período, treinado a partir de modelos europeus, sofrem um impacto significativo ao se deparar com a realidade brasileira. "É preciso pensar que esses artistas estão pintando uma cultura distinta de sua formação. Já havia as grandes metrópoles européias, era um momento de revoluções políticas, de conquista de direitos civis. Como reproduzir isso num país monárquico, escravocrata e eminentemente rural? Isso força, se não a geração de novos modelos, a alteração do modelo original. Para se analisar esse tipo de imagem, não se pode pensar apenas aspectos meramente artísticos, mas também a dimensão econômica, política e social que permite a existência dessas obras. (KV)
http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=661806
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