domingo, 9 de agosto de 2009

Euclides da Cunha - 100 anos de morte

Em 15 de agosto de 1909 morria Euclides da Cunha, escritor que imortalizou Antonio Conselheiro e a Guerra de Canudos em seu livro "Os Sertões". A tragédia pessoal que marcou sua vida e sua morte e as sutilezas de sua obra foram lembradas nesse domingo, 9 de agosto de 2009 pelo Caderno 3 do Jornal Diário do Nordeste. Abaixo reproduzo para todos as matérias.

Abraços e boa semana!
Suely


A LUTA - Davi contra Golias

Euclides, como correspondente de guerra, não chegou a denunciar as barbaridades cometidas contra prisioneiros, porém em "Os Sertões", o livro vingador, descreve sem véus a degola. Na foto, tirada em 2 de outubro de 1897, 400 membros do Arraial


Na gestação de sua obra maior é fundamental a permanência do engenheiro-escritor na pequena São José do Rio Pardo, no interior paulista. Lá, enquanto dirige a reconstrução de uma ponte, elabora "Os sertões", tendo como interlocutores intelectuais da cidade, entre eles Francisco Escobar e, como consultor por correspondência, o estudioso Teodoro Sampaio.

Finalmente, no final do ano de 1902 -, a 2 de dezembro-, há um século, saía, pela editora Laemmert, em parte por conta do autor, a volumosa obra "Os sertões", com subtítulo "Campanha de Canudos", introduzida por uma "Nota Preliminar" em que Euclides explicita alguns dos ambiciosos objetivos do livro, que vão muito além do objetivo inicial de rememoração dos episódios da guerra de Canudos e se propõem a esboçar, "os traços atuais mais expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil (...) destinadas a próximo desaparecimento ante as exigências crescentes da civilização e a concorrência material intensiva das correntes migratórias que começam a invadir profundamente a nossa terra" e, ainda, a denunciar a campanha de Canudos como um crime contra a nacionalidade.

Dividido em três partes, o livro, em muitos aspectos, obedece aos padrões científicos do final do século XIX: uma mistura de herança positivista, com propostas deterministas de base darwiniana e spenceriana. Ao caracterizar Canudos, o escritor busca, mais que tudo, explicar o sertanejo, em especial o jagunço, que desafiou e venceu tantas vezes a República representada pelo Exército brasileiro, em desigual luta de Davi contra Golias. Ao buscar, porém essa explicação, Euclides se defronta com contradições irreconciliáveis entre seus conceitos (e preconceitos) deterministas e sua observação da realidade. Na tentativa de solução deste enigma, desenvolve-se a obra, através de antíteses e paradoxos magistrais.

Na segunda parte d`Os sertões, avulta a figura do Conselheiro que, nas palavras de Euclides, é "um bronco agnóstico", o que os testemunhos que a história recolheu e a publicação dos manuscritos do beato contradizem.

No entanto, a pintura literária do "anacoreta sombrio" é , como poderia dizer Euclides, impressionadora. Assim, "O homem" deve ser lido não como uma bíblia, porta-voz da verdade incontestável, mas como uma das belas páginas da literatura brasileira.

Na terceira parte do livro, "A luta", que narra as preliminares da guerra, as quatro expedições militares que se encaminharam para Canudos, a destruição de Belo Monte, a exumação do cadáver do Conselheiro, Euclides acentua a figura do mais notável chefe militar da guerra de Canudos, Moreira César. Ao descrevê-lo, Euclides considera suas faces antagônicas: o grande herói endeusado pela imprensa e o temível vilão, o cruel Corta-cabeças, que os versos populares divulgavam de boca em boca pelo sertão.

Se, como correspondente de guerra e adido militar à 4ª expedição, Euclides não chegou a denunciar as barbaridades cometidas contra prisioneiros e prisioneiras de guerra, em Os sertões, o livro vingador, descreve sem véus a indigna degola: "Os soldados impunham invariavelmente à vítima um viva à República, que era poucas vezes satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente exposta a garganta, degolavam-na."

Para narrar os últimos momentos do arraial de Belo Monte, Euclides escreve palavras que se inscreveram perenemente na memória brasileira: "Canudos não se rendeu. Exemplo único na História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados."

Outra face importante da obra "Os sertões" é a da sua contribuição à cultura por apresentar um caráter seminal com relação às artes e à literatura. Importa, ainda, ressaltar que Euclides, o escritor d` Os sertões, diferentemente de Euclides jornalista que dava entusiastas vivas à república, inicia sua obra anunciando que vai denunciar um crime e a finaliza, com um capítulo de duas linhas, em que cita o especialista inglês em doenças mentais e medicina legal, Henry Maudsley, para salientar a marca criminosa que caracteriza a guerra de Canudos. Diz ele: "É que ainda não existe um Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades..." (Angela Gutiérrez)

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=660263
Na terra de Conselheiro

Antônio conselheiro anárquico e sensualista de José Celso Martinez Corrêa: encenação em Quixeramobim foi recebida com misto de fascínio e repulsa, graças ao uso da nudez na livre interpretação do livro de Euclides da Cunha (Foto: Fábio Lima)

Euclides da Cunha e a Bahia. Editora: ponto e vírgula. Ano 2009.


Há dois anos, Quixeramobim foi palco da peça "Os Sertões", dirigida e encenada por José Celso Martinez, que atuou no papel de Antônio Conselheiro. A cidade recebeu o espetáculo, que teve cerca de 26 horas de encenação

Em 2007, Quixeramobim, terra natal de Antônio Conselheiro, recebeu a peça "Os Sertões", depois de muita espera. Com cinco fragmentos, o espetáculo, do ator e diretor José Celso Martinez Corrêa, contabilizou quase 26 horas de encenação, produzida por um imenso elenco de quase 100 artistas e técnicos. A estrutura montada, como poderia se esperar para a versão cênica do livro homônimo de Euclides da Cunha, foi grandiosa

Misturando rito, música, poesia, dança e vídeo, a peça do Teatro Oficina Uzyna Uzona foi resultado de sete anos de estudo da companhia paulista, e ocupou o clube recreativo da cidade, que foi reformado para receber a réplica do histórico prédio do teatro oficina. Um palco-passarela também foi construído para abrigar cerca de mil pessoas, contudo o impacto em Quixeramobim ultrapassou esses muros.

Antes do acontecimento, o cearense Thiago Arraias, que teve contato com o grupo quando ainda era estudante do curso de direção teatral da UFRJ, voltou ao Ceará e encontrou-se com membros do Movimento Antônio Conselheiro. Foi o suficiente para o início do projeto.

"Levar `Os Sertões` à cidade onde ele nasceu é valorizar o povo do Ceará. Conselheiro, um cearense como outro qualquer, foi um visionário, uma figura importantíssima para o Brasil e comentada em todo o mundo por seu espírito libertário", considerava o diretor Zé Celso, em entrevista ao Caderno 3, antes de vir para o estado com a peça.

Quixeramobim comemorou bastante essa chegada. Um dos momentos mais bonitos, aliás, aconteceu durante o cortejo, um dia antes da encenação de "A Terra", primeira das cinco partes do espetáculo.

Elenco e produção técnica invadiram as ruas da cidade e se misturaram aos moradores de Quixeramobim, que observaram curiosos Zé Celso transformado em Antônio Conselheiro, surpresa para muitos. Ao lado dos moradores da cidade, os personagens do drama de Canudos percorreram as ruas até chegar à casa do ilustre filho da cidade, localizada no Sertão Central, chamando mais pessoas a prosseguirem na caminhada.

Em cena, o que se viu foi a transformação do cearense Antônio Vicente Mendes Maciel em Conselheiro, espetáculo dividido por meio das temáticas "A Terra", "O Homem 1", "O Homem 2", "A Luta 1" e "A Luta 2".

A polêmica desses dias girou em torno da nudez dos atores, do beijo entre dois homens e outras passagens chocantes, como o oráculo vaginal ou a exploração sexual dos escravos pelos colonizadores portugueses.

Parte do público ficou constrangida, mas poucos deixaram de ver as cenas. Apesar de tudo, o público ria das situações e captava a mensagem, que mais do que qualquer tipo de preconceito, pretendia provocar nas pessoas o interesse pela história do Conselheiro, que acaba se tornando também um pouco da própria história daquela gente.

Há dois anos, Quixeramobim assistiu a essas cenas. Há 100, morreu Euclides da Cunha. Ainda hoje, essa história é resgatada por seu valor como obra literária, social e política de um momento importante na vida do país.

Cidadão consciente de seu papel social

Motivado pela história da Guerra de Canudos, o pesquisador baiano, Oleone Fontes foi levado ao universo crítico e simbólico de Euclides da Cunha. E, assim, ao longo de três anos de trabalho cotidiano, 30 anos de leitura, reflexões, participação em seminários e entrevistas com os descendentes de jagunços, estudiosos,
escritores e historiadores da época do autor de “Os Sertões”; Fontes escreveu o livro “Euclides da Cunha e a Bahia”.

“Meu interesse inicial foi pela guerra de Canudos, que surgiu, talvez, em decorrência de eu haver morado em Queimadas, quando adolescente. O local foi base de operações militares para assalto ao reduto jagunço. Foi Canudos que me levou a Euclides”, conta o pesquisador.

Segundo Fontes, o objetivo da publicação é mostrar como a vinda à Bahia foi importante para Euclides, compor sua obra-prima de 1902: “Os Sertões”. “Relaciono neste ensaio os amigos que Euclides fez na Bahia, os que o influenciaram ou ajudaram na construção de sua obra literária, poética, cientifica - a primeira obra clássica da historia da literatura brasileira”. Em “Euclides da Cunha e a Bahia” há referências sobre Rui Barbosa, que fez um protesto veemente contra os degolas ao final da guerra; Castro Alves, patrono da cadeira ocupada por Euclides na Academia Brasileira de Letras, em 1906; entre outros nomes.

“Euclides da Cunha era um homem de larga consciência social. Em um de seus artigos, chega a citar Marx e outros teóricos do comunismo. ‘Os Sertões’ está para a evolução cultural e literária do Brasil assim como ‘Os Lusíadas’ está para Portugal, ‘Dom Quixote’, de Miguel Cervantes, para a Espanha, ‘A Divina Comédia’, de
Dante Alleguiere para a Itália, ‘Guerra e Paz’, de Tolstoi,foi para a Rússia.

Lançamento
O lançamento do livro está programadopara o dia 3 de setembro, na Fundação João Fernandes da Cunha, no Campo Grande,em Salvador.

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BIOGRAFIA - Livro inacabado

Euclides da Cunha: esboço biográfico de Roberto Ventura preenche lacunas na vida do autor de "Os Sertões"


O professor Roberto Ventura estava realizando uma das mais completas biografias de Euclides da Cunha. Ventura morreu em acidente de carro em 2002. Mas o esboço de sua biografia foi recuperado por amigos e publicado

Roberto Ventura levou dez anos colhendo informações sobre a vida e a obra de Euclides. Infelizmente, ele morreu em acidente de carro em agosto de 2002. Logo, seus amigos buscaram no disco rígido do computador de Ventura seu trabalho sobre Euclides. O resultado é o livro "Euclides da Cunha - Esboço Biográfico", lançado pela Companhia das Letras.

Roberto Ventura (1957-2002) foi professor de Teoria Literária Comparada da Universidade de São Paulo. Publicou vários livros, entre eles, "História e dependência: cultura e sociedade em Manoel Bonfim", "Estilo Tropical: história cultural e polêmicas literárias no Brasil", entre outros.

Ele havia escrito 189 páginas do seu projeto sobre Euclides da Cunha. Deixou os principais pontos que estavam norteando sua pesquisa passo a passo.

Mário Cesar Carvalho, um dos organizadores da obra, aponta paralelos relacionados por Ventura entre a vida de Euclides e a de Antonio Conselheiro. Paralelos espalhados em vários textos do professor. "Ambos eram órfãos, tiveram uma experiência traumática com o adultério, foram construtores (Euclides de pontes e o Conselheiro de igrejas) e tiveram suas trajetórias marcadas pela República".

Conselheiro, na visão de Roberto Ventura, seria, assim, uma projeção dos piores fantasmas de Euclides. Antônio Conselheiro era defensor do cristianismo primitivo e alfabetizado, uma raridade para os padrões do Nordeste brasileiro do século XIX. "O personagem que aparece em `Os Sertões`, como um fanático religioso desafiando a nova ordem da República, seria a projeção de Euclides ao ver os descaminhos do novo regime que apoiara como um jacobino", escreve no seu esboço biográfico.

No seu livro póstumo, Ventura trabalha em dois pilares: o do Conselheiro e o do próprio Euclides. E chega a desconstruir - para entender melhor - a imagem do Conselheiro e a do próprio Euclides.

Muitas biografias já foram lançadas sobre a vida de Euclides - "A Vida Dramática de Euclides da Cunha" (1938), de Eloy Pontes; "A Glória de Euclides da Cunha" (1940), de Francisco Venâncio Filho; "Euclides da Cunha, uma vida gloriosa" (1946), de Moisés Gicovate, "Paraíso6 Perdido: Euclides da Cunha Vida e Obra" (1997), de Adelino Brandão, entre outras. "Os Sertões" ainda foi objeto de dissertações e teses universitárias e uma infinidade de artigos acadêmicos. No entanto, a vida de Euclides é rica e muitos hiatos ainda estão sem respostas.

Hiatos que Roberto Ventura buscou preencher. Enfrentou muitas dificuldades. Seguiu várias pistas, vasculhou arquivos em São Paulo e reuniu vasta documentação relativa aos trabalhos de Euclides da Cunha. Entrevistou descendentes do escritor fluminense e outros professores que publicaram livros sobre ele e Canudos.

Infelizmente Roberto Ventura morreu precocemente num acidente de carro. Mas seu "esboço biográfico" preenche, como era o seu objetivo, muitos hiatos da vida e obra do autor de "Os Sertões".

JOSÉ ANDERSON SANDES
EDITOR DO CANDERNO 3

http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=660266

ARTIGO - Euclides ataca. Euclides morre.

Tiroteiro entre Euclides da Cunha e Dilermando. Ilustração publicada na revista "O Malho". Doze anos após o massacre de Canudos, Euclides teve um fim trágico


O destino de Euclides da Cunha foi marcado pela República e pela tragédia. Sua morte foi o maior escândalo da vida brasileira do início do século passado

O dia 15 de agosto de 1909 era domingo. Na cidade do Rio de Janeiro, chuviscava insistentemente e fazia frio. Do Bairro Copacabana, um homem franzino, de tez amorenada, de bigode, saiu cedo de casa. Estava irrequieto, com seu guarda-chuva preto. Passou em casa da tia Carolina para pedir aos primos Nestor e Arnaldo um revólver emprestado. Seria para "matar um cão hidrófobo que está rondando minha casa", explicou, ao receber o Smith & Wesson, calibre 22, que meteu rápido no bolso do paletó. Dirigiu-se à Estação Central, comprando o bilhete de ida e volta para a Estação da Piedade. Lá saltou e saiu indagando a esmo, onde moravam dois tenentes, que eram irmãos. Não foi difícil encontrar quem soubesse o endereço. Os irmãos eram bastante conhecidos no local, por serem atletas esportivos. Dilermando de Assis ganhara o título de campeão de esgrima e de tiro ao alvo; Dinorah era goleiro do Botafogo. Alguém informou: "É ali adiante, na casa nº 214 da Estrada Real de Santa Cruz" (atual Avenida Suburbana).

Para lá, em passo sôfrego, se dirigiu o homem franzino com revólver no bolso. As portas e as janelas da casa ainda estavam fechadas. Pendurou o guarda-chuva preto no portão de ferro da entrada e bateu palmas, fortes. Dinorah foi atendê-lo, abrindo a porta lateral. Ao adentrar, o homem franzino sacou o revólver do bolso e anunciou: "Vim para matar ou morrer!".

Deu três tiros em Dilermando e, depois, três tiros em Dinorah, que tentou contê-lo. A sétima bala falhou. Apesar de ferido, Dilermando desferiu quatro tiros de revólver calibre 32, uma das balas perfurando o pulmão já enfraquecido pela tuberculose do homem franzino, que caiu em agonia. Um médico foi chamado às pressas. Conta-se que, quando chegou, depois de auscultar o corpo estendido na cama, o médico sentenciou: "Este homem está morto". Por curiosidade, indagou:

- Quem era este homem?
- O doutor Euclides da Cunha.

O médico espantou-se com a revelação do nome. Procurou certificar-se sobre a identidade da pessoa:
- O autor de "Os Sertões"?

Era ele mesmo. Assim morreu o autor do mais consagrado livro brasileiro do início do século XX, vítima de uma tragédia amorosa provocada pela infidelidade de sua mulher, Anna da Cunha, conhecida como Sianinha. Dezessete anos mais novo, o amante Dilermando de Assis foi preso no quartel, submetido a júri popular e absolvido do crime por ter prevalecido a tese da legítima defesa. Libertado da prisão, logo no dia seguinte, em 12 de maio de 1911, casou-se com a viúva que se torna a senhora Anna de Assis.

Mas a tragédia não termina. O cadete Euclides da Cunha Filho, o Quidinho, foi incitado por parente e amigos a vingar a morte do pai, cuja honra continuava a ser afrontada com o casamento de sua mãe com o amante matador. Cheio de ódio e precaução, no dia 4 de junho de 1916, com uniforme militar, ele alvejou pelas costas o padastro, quando este consultava o processo de inventário de Euclides da Cunha no Cartório da Vara de Órfãos no Fórum. Quase desfalecendo, o campeão de tiro, também trajando uniforme militar, sacou de sua arma e abateu o enteado vingador com uma bala na cabeça.

Apesar do desespero de mãe, Anna de Assis se colocou ao lado do marido, que conseguiu sobreviver ao ataque. Submetido a Conselho de Guerra, Dilermando de Assis foi absolvido por unanimidade.

Contudo, desde a morte de Quidinho, o casamento não foi mais o mesmo. A vida em comum tumultuou-se e Dilermando de Assis procurou conforto nos braços da jovem Marieta. Descobrindo a infidelidade, Anna saiu de casa com os filhos, para viver na pobreza. Ela, que traíra Euclides, não tolerou a traição de Dilermando e abandonou o antigo amante.

Enredo de novela?

Poderia ser. Mas são fatos históricos que remetem ao acontecimento editorial que fez do diligente engenheiro de obras do governo de São Paulo, que construiu uma ponte metálica na cidade de São José do Rio Pardo, um dos maiores escritores do Brasil.

O livro

Sete anos antes da tragédia da Piedade, em 1902, Euclides da Cunha abalara o meio intelectual do País, com a publicação do livro "Os Sertões (Campanha de Canudos)", que imediatamente provocou admiração e aplauso.

De um momento para outro, virou celebridade, colhendo elogios gerais, inclusive de críticos exigentes como José Veríssimo e Sílvio Romero. Antes, o autor era vagamente conhecido pelos artigos que publicava no jornal O Estado de S. Paulo. Por causa desses artigos, sempre bem escritos, em 1897, ele fora designado correspondente desse jornal paulista na Guerra de Canudos, travada no interior da Bahia entre o Exército brasileiro e os seguidores do místico cearense Antônio Conselheiro.

A história da campanha militar, a experiência adquirida no contato com o meio agreste e com o sertanejo lhe inspiraram a obra, só que ela transpôs os limites da cobertura jornalística, para se situar numa fronteira entre o ensaio científico e a ficção literária. A obra foi dividida em três partes: "A Terra", "O Homem" e "A Luta", formando uma complexa unidade, com os dois primeiros temas justificando o terceiro. O texto foi surpreendente para seus contemporâneos, vazado em termos técnicos, recheado de palavras arcaicas; uma linguagem barroca, com antíteses, hipérboles e oxímoros, ao lado de descrições vigorosas, coloridas e poéticas. Parte da obra sofreu influência dos preconceitos raciais da época, induzidos pela filosofia determinista. No entanto, excetuado esse conteúdo superado, o livro se preserva extraordinariamente atual.

É preceito que um livro é considerado clássico quando ele admite, com o passar dos anos, interpretação atualizada de sua mensagem. Ou seja, o seu conteúdo é rejuvenescido com as releituras, que encontram nele uma verdade permanente ou uma fonte de sabedoria e beleza. O caso de "Os Sertões" é paradigma desse preceito. O ensaísta José Guilherme Merquior, com sua autoridade na matéria, afirmou que o livro é "o clássico de ciências humanas no Brasil". Como obra sociológica pioneira, descobriu os dois brasis, com as civilizações do litoral (progressista) e do interior (atrasada). Como obra histórica, registrou os erros políticos e militares que levaram o País a uma guerra civil. O estilo refinado da linguagem e a alta qualidade de seu texto lhe conferem lugar destacado como obra literária.

Não encontrando interessados na publicação do seu livro sobre a Campanha de Canudos, Euclides da Cunha pagou do próprio bolso a edição contratada com a casa Laemmert, do Rio de Janeiro. Pronta a impressão, ao fazer a revisão do livro, ficou desesperado com os erros tipográficos. Empreendeu a insana tarefa de emendá-los manualmente, acrescentando o que faltava com tinta de caneta e raspando com canivete o que sobrava no texto impresso de cada exemplar, para assombro e zombaria dos operários da oficina. Somente depois é que autorizou a editora a expor o livro na vitrine.

Sob tanta expectativa, o autor ficou nervoso, porque "tinha certeza" que a obra seria "um desastre". Conforme recordou depois, não aguentando a ansiedade, ele deixou o Rio de Janeiro e foi para a cidade de Lorena (SP), onde residia.

Mal chegou, saiu sem destino, a cavalo, vagando pelo interior de São Paulo, procurando não ver ninguém, esconder-se, para não ter notícia do "desastre" do livro. Ao cabo de oito dias, cansado e com saudade da família, resolveu voltar. Foi para a estação de Taubaté esperar o trem que vinha do Rio de Janeiro. Estava no restaurante quando avistou um passageiro com um livro debaixo do braço. Fixou os olhos no volume meio encoberto e não acreditava no que estava vendo. Num impulso, abordou o desconhecido, pedindo-lhe para mostrar a capa do livro. Era "Os Sertões", era a primeira manifestação do sucesso editorial que se mantém há 100 anos.

PÁDUA LOPES
ESPECIAL PARA O CADERNO 3

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100 ANOS DE MORTE - Enigma Euclides


Desde aquele agosto, passaram-se 100 anos. No entanto, Euclides permanece eterno, mais pela fertilidade da obra que o consagrou do que por qualquer aspecto biográfico de sua breve vida de 43 anos. Neste artigo, a trajetória de um dos maiores escritores do País e suas impressões sobre Canudos

Era 15 de agosto de 1909, manhã chuvosa de domingo, na Estação da Piedade, Estrada Real de Santa Cruz, no Estado do Rio de Janeiro. Um homem atormentado e só enfrenta a morte e conhece, enfim, a indesejada das gentes. Um drama passional rouba ao país o laureado escritor que, sete anos antes, em 1902, publicara Os sertões.

Se, naquele momento, o Brasil perdia um de seus mais renomados intelectuais que prometera dar continuidade à sua obra de gênio com a escrita de Paraíso perdido, sobre a região amazônica, herdava, porém, deste homem, uma das obras mais significativas do acervo nacional com o livro que se quis, inicialmente, uma narrativa sobre a guerra de Canudos e realizou-se como uma reflexão sobre o Brasil.

Testemunha

Ao elaborar, através de um livro-bíblia - e Canudos se fez verbo - , um compêndio do conhecimento da época, uma explicação para Canudos, Euclides, que fora, ainda que nos últimos dias do conflito, testemunha ocular do episódio, tenta conciliar o impossível: seu modelo científico, pautado em teorias deterministas, e sua pasmada observação da realidade discordante.

Ao mesmo tempo, porém, constrói uma obra tão sedutora em suas contradições, que perpetua o episódio na memória e no imaginário do povo brasileiro.

Até muito tempo depois da publicação do livro maior de Euclides, "Os sertões" e a história de Canudos tornam-se sinônimos. Várias décadas após o lançamento de "Os sertões", com a publicação dos estudos pioneiros de vários pesquisadores, como os cearenses Abelardo Montenegro e Nertan Macedo, e, na Bahia, Odorico Tavares e, especialmente, Dr. Calasans e com a divulgação, por Ataliba Nogueira, das prédicas de Antônio Conselheiro, em 1974, pôde-se enxergar o outro lado, multifacetado, da história.

Que sensação, porém, o leitor do século XXI experimenta diante da obra majestosa de Euclides, publicada no início do século XX mas gerada no final do século XIX e debruçada sobre acontecimentos ainda palpitantes à época de sua publicação mas, hoje, aparentemente desencarnados de sua dramaticidade histórica?

Talvez a de quem se depara com um grandioso monumento da antiguidade, como a pirâmide, e se sinta fascinado mas desencorajado a empreender a subida a seu topo. Se, porém, subir a labiríntica pirâmide euclidiana, tenho certeza, sentirá a vertigem de quem contempla, deslumbrado, a História e a Literatura de seu país e a história e a escrita literária de um homem de gênio. Nascido em 20 de janeiro de 1866, logo órfão de mãe, criado por tias, de temperamento arredio quase tímido mas, ao mesmo tempo, capaz de gestos e rompantes desafiadores e de atitudes corajosas - penso no famoso episódio de 1888 em que , como cadete de idéias republicanas, lança seu espadim aos pés do ministro do Império, em cerimônia na Escola Militar -, Euclides segue para a Bahia com a quarta e última expedição ao arraial de Antônio Conselheiro... e muda o rumo da sua vida e da cultura do Brasil.

O convite

Depois da publicação de dois artigos sobre a campanha de Canudos, n` O Estado de São Paulo, sob o título de "A nossa Vendéia", em 14 de março e 17 de julho de 1897, Euclides atende a convite da direção deste jornal para acompanhar, na novíssima condição de correspondente de guerra, a expedição comandada pelo General Artur Oscar.

Partindo no navio Espírito Santo, que transportava militares da 4ª expedição militar da Campanha de Canudos, o então jornalista e adido ao Estado Maior do ministro da Guerra Carlos Machado de Bittencourt chega a Salvador em 7 de agosto do mesmo ano.

À época, o futuro autor de Os sertões demonstrava a convicção, então muito difundida pela imprensa, de que a rebelião no sertão visava à restauração da monarquia (daí a comparação com o movimento de camponeses franceses da Vendée) e que, portanto, a jovem república brasileira corria perigo.

Em sua curta permanência no chamado teatro de guerra, em contacto com soldados feridos, jagunços presos, gente da terra, militares, médicos e acadêmicos de medicina em ação e, também, através de pesquisa em arquivos e livros na capital da Bahia, Euclides vem a entender que a questão era muito mais complexa e, a partir do final da guerra, dedica-se a desvendá-la.

Suas primeiras impressões dos acontecimentos de Canudos são registradas não só nas reportagens que envia ao Estado de São Paulo, como na sua Caderneta de campo e em seu Diário de uma Expedição, os dois últimos publicados após a morte do escritor e são valiosas para análise do texto final de Os sertões.

ANGELA GUTIÉRREZ
ESPECIAL PARA O CADERNO 3


http://diariodonordeste.globo.com/materia.asp?codigo=660255

Um comentário:

Carlos Nascimento disse...

Olá!
Ainda não passei pelo sertão, mas gostei muito de ter passado por este canal de informações.
Parabéns.
Abs.
www.naturezaepaz.blogspot.com