quinta-feira, 27 de maio de 2010

História do Ceará




JORNAL O POVO - ESPECIAL INQUISIÇÃO - PARTE 1



Os passos da reportagem



22 Mai 2010 - 21h52min
O levantamento das informações para os três cadernos sobre a presença da Inquisição no Ceará incluiu viagens a Lisboa e incursões na documentação da Torre do Torre do Tombo, Arquivo Nacional de Portugal, entrevistas com padre Bráulio Reis, prior da igreja de São Domingos, e roteiros nos locais por onde atuou o Tribunal do Santo Ofício na capital lusitana. 



Além de Lisboa, os repórteres percorreram comunidades descendentes de cristãos novos corridos de Portugal, que se instalaram no sertão do Seridó no Rio Grande do Norte e na Paraíba. No Ceará, as andanças se deram pelos municípios de Aracati, Icó, Tauá, Quixeramobim, Sobral e Viçosa. 


Parte da pesquisa também contou com a orientação do pesquisador A. Otaviano Vieira Júnior, professor doutor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará (UFPA). 

Além dos arquivos disponíveis da Torre do Tombo, em Lisboa, e na internet, O POVO consultou também documentação do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará, escritos de Capistrano de Abreu, António Baião, Anita Novinsky e índices do banco de Dados da Fundação Ana Lima.



Trama de silêncios



22 Mai 2010 - 21h52min


No Sertão desterrado do Ceará colonial (1752-1802*), a Inquisição portuguesa também vigiou consciências. Alimentou a alcovitagem da vida alheia, perseguiu bígamos, falsos profetas, libertinos, blasfemadores, serviu de trampolim social para famílias dos dedo-duros e foi responsável por assassinato de gente daqui nos cárceres em Lisboa ou nas galés lusitanas de cruzar mares. 


Aqui, não existiram os espetáculos mórbidos dos autos-de-fé nem se espalhou o odor da fumaça das fogueiras de expiar bruxas. Como aconteceu no largo da Igreja de São Domingos e trilhas das ribeiras do Tejo, em Lisboa. Mas muita gente teve o nome queimado publicamente e estigmatizado, por gerações. 

Os repórteres Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio viajaram a Portugal e, na Torre do Tombo, o arquivo nacional português e fonte de boa parte da história de suas ex-colônias, investigaram os porões do Santo Ofício no Ceará e as relações com as perseguições na capitania de Pernambuco. 

Na investigação jornalística, da qual participaram também os repórteres Luiz Henrique Campos e Ana Mary C. Cavalcante, a descoberta de processos inéditos relacionados ao Ceará. Entre as narrativas de perseguição, a história de Francisca Rodrigues de Sá, da serra da Meruoca, até agora como a única mulher no rol dos amaldiçoados pela igreja no Ceará. 

Dos 19 processos, 11 foram descobertos pelos repórteres e não constam, até aqui, em pesquisa acadêmica ou publicação jornalística. Pela primeira vez serão divulgados, com exclusividade, por um jornal. 

Ainda é raso o conhecimento sobre o tema por aqui. Há escritos do Barão de Studart, um artigo do historiador baiano Luiz Mott, a tese de doutoramento (livro) do professor Otaviano Jr. e alguns livros índices sobre a formação judaica no Nordeste, produzidos pelo pesquisador Cândido Pinheiro. Mesmo assim, há pouca literatura sobre a ação do Santo Ofício num Ceará pobre, pertencente à capitania de Pernambuco, que a coroa portuguesa custou a se interessar e a ocupar. 

Nas 12 páginas que se seguem, e em mais dois cadernos que virão, O POVO vai tirar do silêncio o episódio que marcou o destino dos caçados pela Inquisição no Sertão cearense. Uma teia do moralismo e intolerância onde caíram índios, escravos, viúvas, comerciantes, cristãos velhos... 

No ano que marca a passagem de quase dois séculos (189 anos) do fim da Inquisição lusitana em suas colônias (1536-1821) e no dia que marca os 474 anos da instalação da Inquisição em Portugal (23 de maio de 1536), O POVO convida o leitor a lançar um olhar sobre essa faceta violenta da formação cotidiana do Nordeste brasileiro. Forjada entre a vida privada e pública dos que aqui habitaram ou se refugiaram no tempo do Brasil Colônia. 

* 1752 é o ano da primeira sentença dos 19 condenados pelo Santo Ofício no Ceará. O bígamo Manuel Fragoso de Albuquerque, do Cariri Novo. E 1802, o ano da última condenação aqui. Francisco Luís de Mariz Sarmento, da Vila de Fortaleza, por libertinagem e blasfêmias. 


A Inquisição o mar e a seca

Cândido Pinheiro

Koren de Lima
Médico 

22 Mai 2010 - 21h52min


A presença judaica na Ibéria é antiquíssima. No livro de Salomão, há referências à presença deles na região de Tarshish, para onde iam em barcos fenícios do rei Hiram em busca de matéria-prima para construção do primeiro templo. A convivência na terra peninsular, no entanto, quase sempre foi marcada por perseguições e tragédias. Nas épocas godas, muçulmanas e da reconquista, curtas fases de paz e liberdade religiosas entremearam períodos extensos de escuridão. Apenas nos períodos godo, que antecedeu a conversão destes ao catolicismo, e no muçulmano omíada viveu-se certa tranquilidade. Nesta última fase a Espanha transformou-se no mais rico país do mundo e albergou a mais numerosa colônia judaica do planeta. Com queda dos omíadas e durante os períodos almóadas e almorávidas, e nestas mesmas fases, na área da reconquista, a luta pela vida e pela liberdade religiosa foi uma tarefa diária e extremamente árdua. Tudo culminando com decisão dos reis católicos de Espanha em não permitir mais a presença da religião judaica em seu território. 


As opções eram converter-se ao catolicismo ou sair. Os que não aceitaram a conversão saíram da Espanha em 21 de agosto de 1492 (9 de av). Cerca de 300 mil judeus emigraram. Cem mil deles entram em Portugal, que somados aos hebreus autóctones passaram a representar 10% a 20% da população portuguesa. Ao entrarem em sua nova pátria pagaram tributos por cabeça e por posse em troca da promessa de liberdade religiosa. Eram os de pouca posse: artesãos, ferramenteiros, ferreiros, ourives, médicos de pouco nome e demais pequenas profissões que interessavam a Portugal. 

O avô e o pai de Mestre Roque fizeram esta opção. No país luso passaram a morar em Évora, em Monxarax. Esperavam muito. Afinal a Ibéria era a terra deles há muitas e muitas gerações. A paz, no entanto, demorou muito pouco. No ano seguinte ao da expulsão da Espanha, movido por motivos políticos, e usando o furor do fanatismo religioso, iniciou-se a onda de conversões forçadas. Ao mesmo tempo era firmada a proibição de deixarem o país. Os conversos passaram a ser propriedade do estado. Em 1497 a religião judaica foi proibida em Portugal e ao lado disto todos os judeus foram conversos forçadamente. Aprisionados e sem comida e água, sobre eles foram jogados baldes de água benta. 

Assim estava extinto oficialmente o judaísmo na Ibéria. 

Os produtos deste ato bárbaro, os cristãos-novos, ou marranos, no entanto continuaram secretamente a prática de sua fé ancestral, até que em 1536 foi criada a Inquisição portuguesa com a finalidade principal de zelar pela prática católica daqueles, em sua maioria, conversos à força. 

O avô e o pai de Mestre Roque também foram obrigados à conversão. Como a maioria do povo converso continuara secretamente na sua fé. Ao mesmo tempo, ele exercia a medicina rudimentar que aprendera com os seus. Vivia de sua profissão em Évora quando foi surpreendido e preso pelo Santo Ofício sob a alegativa que praticava a lei antiga contida no Velho Testamento. Levado ao cárcere e sob torturas sucumbe. 

Confessa a fé e prática na lei mosaica, e denuncia os seus parentes e amigos. Com remorso de ter levado a desgraça a mais pessoas toma um urinol de cerâmica, sujo de fezes e urina, único objeto existente em seu cárcere, quebra-o e com seus fragmentos corta as veias e artérias de seu pescoço. Tinge de sangue rutilante judeu o chão de Portugal. 

O mal, no entanto, já estava feito. Nos últimos depoimentos Mestre Roque havia dito que seu irmão Fernão Lopes acreditava no Velho Testamento. Este era alfaiate do Duque de Bragança. Isto nada lhe valeu de proteção no Santo Ofício. Preso, confesso e renitente, terminou sendo queimado vivo pela Santa Inquisição. 

A esta altura, o que restava da família, que estava fora do cárcere, em polvorosa fugiu de Portugal. A mulher de Fernão Lopes, Branca Rodrigues, uma irmã dela, Violante e seu marido, juntamente com os filhos de ambas as irmãs fugiram para a Bahia. Cá estavam e em paz em 1591 quando chega o visitador do aparelho inquisitorial, que pela primeira vez na Bahia faria uma devassa terrível nos costumes então relativamente livres da capitania, cujo objeto maior era verificar a prática do catolicismo por parte dos judeus conversos e seus descendentes. Na Bahia chovem denúncias da prática religiosa da família. Afirmavam inclusive que possuíam Sinagoga em sua residência. O destino mais uma vez fechava as portas para eles. 

Beatriz Mendes, uma filha de Fernão Lopes, o executado, e de Branca Rodrigues, já então casada com Francisco Mendes Leão, temerosa refugia-se com o marido, em Pernambuco. Não sabiam o destino do visitador. Este, terminada a devassa na Bahia, vai imediatamente a Pernambuco, com mesma finalidade, onde chega em 1593. A primeira denúncia feita ao inquisidor em 24 de outubro de 1593 é exatamente contra o casal fugitivo, e por judaização. Sabedores da denúncia, eles novamente fogem. Abandonaram Pernambuco. Deixam, no entanto, uma filha. 

Isabel Mendes, a filha do casal fujão, ficou em Pernambuco, porque já então era casada e com cristão-velho, coisa que lhe dava certa proteção. O marido era Pero Cardiga Lobato, que nascera em Sardoal em 1534. Depois passou a Pernambuco onde em 1593 era capitão de ordenanças de Olinda e rico senhor de dois engenhos, um na Várzea e outro no Jaboatão. A mulher Isabel escapa do Santo Ofício, mas Pero Cardiga não consegue fazê-lo. Possuidor de um pavio curtíssimo e de uma língua bem solta foi denunciado, processado por blasfêmia e julgado pelo Santo Ofício em Olinda. O ato final ocorreu em 16 de julho de 1594. Foi penalizado com repreensão sigilosa e pagamento de custas processuais de 100 cruzados. 

É bom falar-se aqui que, apesar de se dizer que tribunais do Santo Ofício só existiram em Portugal (5) e Goa, o processo do velho Pero Cardiga é prova inconteste que existiram em outras paragens, inclusive aqui em Olinda. O cristão-velho Pero Cardiga e a marrana Isabel Mendes tiveram vasta descendência. Dois de seus filhos são objetos de nossa citação: Felipa e Tomázia Cardiga. 

Felipa Cardiga foi a mulher de Frutuoso Barbosa que, apesar de apresentado como cristão-velho, não era exatamente isto, pois oitavo neto do judeu Ruy Capão, fato que não lhe impediu de ser Cavaleiro da Ordem de Cristo. Ele chegou a Pernambuco ainda novo e embrenhou-se na Paraíba ainda virgem à procura de pau-brasil. Fez grandes cabedais nesta atividade. Rico, voltou a Lisboa onde reivindica o arrendamento da Paraíba, capitania real. Conseguiu-o em 25 de janeiro de 1579 pelo prazo de dez anos, com investimento total às suas expensas. Obteve para tal o título de primeiro capitão-mor governador da dita capitania e um salário anual de 200$000. Armou navios, contratou mão-de-obra, adquiriu ferramentas e armas e partiu para Paraíba. A pressa era tão grande de chegar ao seu destino que, tocando primeiro em Pernambuco, atracam os navios ao largo, para um reabastecimento rápido, e resolvem pernoitar nos navios sem descer. Nesta mesma noite, uma monstruosa tempestade abate-se sobre a costa pernambucana, arranca os barcos das amarras e joga-os aos mares sem destino. O navio em que se encontrava Frutuoso Barbosa veio dar no Caribe, onde falece sua primeira mulher Maria Jacques. Viúvo e pobre, volta a Portugal para novamente reivindicar a Paraíba, agora governada por João Tavares. Foi assim que ele em 1587 passou a ser o segundo capitão-mor governador da Paraíba. 

Em Pernambuco havia casado com Felipa Cardiga, a judaizante. Deixaram enorme descendência. Entre eles os primevos Barbosas no Nordeste, e em Portugal. Entre os últimos citam-se os Viscondes de Montalegre. Uma irmã de Felipa Cardiga, Tomázia, também filha de Pedro Cardiga e da judaizante Isabel Mendes, morou na Paraíba onde vivia casada com Pero Coelho de Souza, que era, segundo o Barão de Studart, açoriano. Em 1603 Pero Coelho de Souza resolve tentar a conquista da Ibiapaba, então defendida por nativos hostis secundados e auxiliados por franceses. 

Recebeu ele para tal missão o título de capitão-mor. Mandou por mar três barcos com mantimentos e munições em direção ao rio Jaguaribe, onde deveriam se encontrar com os que iam por terra, chefiados por ele próprio, que seguiu com 65 soldados, entre os quais Martim Soares Moreno, e ainda 200 índios flecheiros. Encontraram-se no rio Jaguaribe, daí seguiram para Camocim e, em seguida, à Ibiapaba, onde venceram os nativos e aprisionaram os franceses. Segundo Barão de Studart, desejava ele seguir ao Maranhão então dominado pelos franceses. Uma rebelião entre os seus o obrigou, no entanto, a retornar. 

Em 1605 Pero Coelho de Souza, acompanhado da mulher, a marrana Tomázia, e filhos, parte novamente para o Ceará, desta vez em uma caravela. Aqui chegando, sofrendo a deserção dos seus soldados, enfrentando forte oposição nativa e, diante de uma seca terrível, empreende uma terrível retirada a pé, em busca da Paraíba. Além da família acompanham-no 16 soldados e o índio Gonçalo. A travessia da infeliz caravana foi por demais dramática. Desesperados e atingidos pela fome e sede, viram um a um irem-se sem vida os companheiros. Dos cinco filhos do capitão-mor, pelo menos dois, entre eles o mais velho de 18 anos, faleceram de fome e sede. Finalmente, esqueléticos, chegam ao Rio Grande, onde Tomázia não conseguindo resistir aos sofrimentos do corpo e da alma falece. 

Cumpre-se assim em Tomázia o destino dos seus desde a Ibéria até o Ceará.


Cândido Pinheiro Koren de Lima é médico e pesquisador da cultura judaica no Nordeste 


Dez anos nas galés

Demitri Túlio

Enviado a Portugal
demitri@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


A espionagem sobre a vida privada de cearenses ou portugueses que sentaram praça no Ceará não levou ninguém à fogueira. Mas entre os castigos impostos pela Igreja Católica, o degredo e o confinamento nas galés lusitanas que cruzavam o Atlântico e outros mares entre 1752-1802, marcaram a violenta história da Inquisição. De 19 perseguidos, seis homens amargaram os serviços forçados nas caravelas do reino de Portugal. Entre eles, dois idosos de 60 anos. 


Um dos processos, investigados pelo O POVO na Torre do Tombo em Lisboa, revela que o escravo Domingos da Silva de Oliveira foi o que mais tempo ficou à mercê do insalubre castigo nas galés. Foram dez anos preso em uma caravela. Mais novo entre os condenados daqui, Domingos tinha 30 anos de idade e acabou dedurado ao Santo Ofício por crime de sacrilégio. 

O negro, de propriedade de capitão-mor Bento da Silva de Oliveira, morador do Icó, antes do degredo no mar foi açoitado publicamente, teve de pagar penitências espirituais e foi obrigado a receber instrução católica para sará-lo do pecado. 

Por bigamia, os inquisidores condenaram também às galés o pastor de animais Francisco Barbosa, 60, Manuel Ferreira de Morais, 60, António Tavares de Sousa, 38, António Mendes da Cunha, 40, e Manuel Fragoso de Albuquerque, 40. Os cinco foram capturados e levados para Lisboa. Além de serem torturados em praça pública durante os autos-de-fé, foram obrigados a remar feito cativos durante cinco anos nos porões dos navios reais. 

Manuel Fragoso de Albuquerque, 40, habitante do Icó e natural do Cariri Novo, hoje Crato, teria sido entre os sentenciados o primeiro a ser preso e condenado pelo Tribunal católica do Santo Ofício. Foi preso em outubro de 1752 e sua sentença foi lida em 29 de maio de 1754. Fragoso pecou contra a lei de Deus ao se casar com duas mulheres sem ter enviuvado da primeira. No segundo casamento, uniu-se a Francisca Rodrigues da Silva. 

A idade não era atenuante para os julgadores do Tribunal da Santa Fé em Lisboa. Dos Inhamuns, na localidade de Várge da Vaca, atual Campos Sales (que hoje é município da região do Cariri), os familiares da Inquisição & espiões do Santo Ofício nos sertões -, denunciaram o idoso Félix José da Silva Gaia, 70, por falso sacerdócio jesuíta. Nos documentos da Torre do Tombo há a indicação de condenação, mas não há registro detalhado sobre a pena imposta. 

Entre os 19 sentenciados no Ceará, uma mulher. A ré Francisca Rodrigues de Sá, 32, vivia na Serra da Beruoca, hoje Meruoca (região norte do Ceará), entrou no rol dos culpados da Inquisição de Lisboa por crime de sacrilégio. Destruído pelo tempo, o processo não informa sobre a sentença da prisioneira que morreu durante o andar do processo. 

Segundo pesquisas do historiador Otaviano Vieira Jr., autor do livro A Inquisição e o Sertão e professor da Universidade Federal do Pará (ler entrevista página 12), entre 1750-1821 foram encontrados 47 nomes de denunciados no Ceará segundo o caderno 328 do promotor. Desses, nove foram processados pelo Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. (Colaboraram Cláudio Ribeiro e Luiz Henrique Campos) 


O Ceará no santo ofício

Luiz Henrique Campos

lhcampos@opovo.com.br 

22 Mai 2010 - 21h52min


Inquisição chega ao Ceará na primeira metade do século XVII quando o então Ceará Grande pertencia à capitania de Pernambuco. Inóspita e desconhecida, a região era pouco explorada pelos colonizadores, mesmo tendo pertencido ao Maranhão anteriormente. As primeiras denúncias coincidem com a ocupação do território através da pecuária explorada ao curso dos rios. 


A dificuldade enfrentada pelo Ceará no século XVII é atestada por documento microfilmado na Torre do Tombo, datado de 1816, quando o terceiro governador do Ceará, Luís Barba Alardo de Meneses, faz referência ao começo da capitania. Ele diz: ``Pode-se seguramente afirmar que até esse tempo era desconhecida e considerada como árida e estéril e por isso não teve nunca donatário...``. 

A criação do gado seguindo o caminho das águas Interior adentro, porém, produz fenômeno diferenciado de ocupação territorial na capitania cearense. Se núcleos urbanos surgidos no litoral mantiveram a posição hegemônica em outras regiões, como Salvador, Recife e Rio de Janeiro, no Ceará se deu o contrário. 

Os primeiros povoamentos a alcançarem relevância econômica surgiram no Interior, como consequência da migração advinda da Bahia, de Pernambuco e da Paraíba. Elementos aglutinadores dessa ocupação, as fazendas de gado surgem às margens dos rios Jaguaribe e Acaraú, como responsáveis pela formação dos primeiros núcleos de povoação, nascendo daí as cidades de Icó, Aracati e Sobral. 

O Ceará pertenceu à capitania de Pernambuco até 1799. Com a independência, já em meados do século XVIII, a pecuária consolida-se como a primeira atividade de importância para o Estado, a partir da produção da carne seca. Por essa época as vilas de Icó e Aracati se destacam como polos econômicos. 

Mas apesar do progresso verificado, a situação da capitania ainda era muito pobre. Em descrição sobre o ano de 1814, o naturalista João da Silva Feijó, afirma: ``à vista do que se há expendido até aqui, he para admirar o atrazamento em que tem estado esta capitania, apesar de ser povoada a mais de duzentos annos; com tudo, como se vê, ha grandes recursos e meios infinitos de se prosperar, e fazer rapidos progressos....``. 

Feijó, sargento-mor, e encarregado de investigações filosóficas na capitania, bem como Luís Barba, ignoram a Inquisição em suas observações quase um século depois da primeira denúncia. 


Casamenteiro do sertão

Cláudio Ribeiro

Enviado a Portugal
claudioribeiro@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


Paschoal Martins foi um mentiroso de marca maior. Talvez até chamado de safado, sem-vergonha, ou mais que isso, depois do que souberam dele. Português, da ilha dos Açores, pastor de gado. Jovem, foi mascate. Pois se meteu de casar três vezes no sertão do Brasil sem nunca enviuvar. Inadmissível para aqueles anos de Inquisição. 


Ainda era a primeira metade do século XVIII. Pior: para cada outra mulher que arranjou depois da primeira, Paschoal inventou para si um nome diferente. Uma delas, a terceira, viveu aqui no território da então Capitania do Ceará Grande, Bispado de Pernambuco. Eis que descobriram tudo, a Santa Inquisição soube. A casa caiu. Na verdade, as três. 

O próprio admitiu aos inquisidores tudo o que fizera, já levado de volta a Portugal, como réu preso. Estava com 60 anos. Confessou em depoimento: ``foi malícia``, agiu por ``fragilidade``, ``tudo fizera como tollo``, ``pouco juízo``. É o que contam as letras em bico de pena no seu processo, o de número 7157, na Inquisição de Lisboa. Está no arquivo nacional português da Torre do Tombo. Acusação formal no Tribunal do Santo Ofício: poligamia. Hoje, no mínimo, também seria imputado judicialmente em falsidade ideológica. 

O caso é curioso, mesmo para época. Com a primeira ``e única`` mulher, Violante Dias, mais velha que ele quase 20 anos, viveu em Recife por seis ou sete anos. Não tiveram filhos. Casou-se na Capella do Paraízo, da Freguesia de Nossa Senhora do Rosário, em 8 de novembro de 1723. Era ele cristão batizado. Da infância que teve em Braga e Porto, ainda em Portugal, a vida acabou trazendo-o adulto para a colônia Brasil. Bateu-se no Pernambuco. Foi o trabalho de mascate que o soltou pelas vilas do Ceará Grande. 

Achou tão cômoda a distância de casa que quis voltar à ``solteirice``. Para ``esconder-se``, Paschoal inventou ser Antônio da Costa de Souza. O processo não apurou melhor se mudou o nome por dívidas, se fuga de outras safadezas amorosas ou se só mesmo pela tal ``malícia`` declarada. Bastaram dez testemunhas e a confissão. Pois nas andanças de galego, vendeu também no Limoeyro, freguesia de Santo Antônio do Tracunhaem, ainda Pernambuco. Conheceu Francisca de Barros da Sylva, segunda e ``única``. 

Lábia das boas, pelo que parecia, estrangeiro, apessoado, e já estava casando de novo. Em 15 de setembro de 1746, Igreja de Nossa Senhora da Apresentação, na missão do Limoeyro. Os autos inquisitoriais dizem que viveu por lá mais seis anos. Parecia sua cota de tempo num lugar. Queria andarilhar e foi-se de novo. Para as bandas do Acaracú (hoje rio Acaraú). 

A ribeira cearense, ao lado da Villa de Sobral e de outras bem sucedidas, atraía negociantes. Lá, afirmando que ``já estava sete a outo anos longe da segunda mulher, casou-se pela terceira vez``. A terceira ``e única`` era Clara de Mendonça, branca, viúva, não sabia a idade (``mais de 50 anos``, segundo os autos). 

O nome também já era outro: Francisco Barbosa Braga. Criado a partir do nome da segunda (Francisca) e da cidade onde viveu (Braga). O terceiro casamento está registrado no Livro dos Assentos dos Cazamentos da Freguezia de Nossa Senhora do Acaraú, folha 138, realizado em 13 de fevereiro de 1752. ``Corrido a banhos nesta freguezia e sem impedimento algum``, apurado e registrado nos autos do processo. No interrogatório nos Estaos, a casa das audiências da Inquisição, Paschoal chegou a dizer que foi um amigo que o avisou da morte da primeira mulher. Não convenceu. Seu processo, de 240 páginas, foi concluso em 28 de novembro de 1764. ``Com grave damno e prejuízo de sua alma e injuria do sacramento do matrimonio``. 

``Mandão que o reo Paschoal Martins, aliás Antonio da Costa, aliás Francisco Barbosa em pena e penitencia das suas culpas vá ao auto publico da fé na forma costumada, nele ouça sua sentença, faça abjuração de leve(...): será açoutado pelas ruas públicas dessa cidade, citra sanguinis effusionem e o degradão por tempo de sinco annos para as galés de sua magestade(...). Será instroido nos mistérios da fé necessários para a salvação de sua alma e cumprirá as mais penas e penitencias que lhe forem impostas e paguem as custas``. Recebeu ordem de rezar um terço do rosário e em cada sexta-feira cinco Pais-nossos e cinco Aves-Marias e Paz de Christo. 

A última das notícias sobre Paschoal foi a de que padecia em várias internações de ``sezões`` (febres muito altas com sintomas de delírio), ``queixas habituais``, e sofrendo da ``suspensão de urinar``, ``maltratado pelo guarda com pancadaria``. Nas galés, os porões dos navios, os presos apanhavam constantemente. O último documento de seu processo é o registro de uma visita do cirurgião dos cárceres secretos. Tinha dores de ``diabetes`` e ``incontinência urinária``. 


Cúmplices da bigamia alheia



22 Mai 2010 - 21h52min


Os bígamos não foram poucos. Foi a principal das acusações registrada no Ceará colonial, em processos da Santa Inquisição. Alguns tachados de polígamos também, por terem tido mais que duas mulheres. No total, 13 dos 19 casos encontrados pelo O POVO nos arquivos da Torre do Tombo referentes a esta capitania. 


Três dos casos de perjúrio (falso juramento) apurados pelos inquisidores no Ceará e listados pelo O POVO estão associados a um único caso de bigamia, cometida pelo pernambucano João Cavalcanti e Albuquerque (processo 12954). João se casou com uma segunda mulher, Maria Pereira do Vale, na freguesia de Russas, mas a primeira, Filippa de Santiago, ainda estava viva no Engenho de Apuá, em Pernambuco. Três das quatro testemunhas deste seu segundo casamento foram acusadas de ``malícia no juramento``. Já sabiam que ele não era tão solteiro como se mostrava. 

Para a Inquisição, cometeram o perjúrio: o criador de gado e curtidor de couros José Cardoso de Melo (processo 2778), morador da freguesia de Russas, na localidade Xique-xique, ribeira do Jaguaribe; Miguel Alves de Faria Pita (processo 2776), que vivia de comércio em Russas; e Domingos Gonçalves Borges, também do lugar. Todos vizinhos do bígamo. 

José Cardoso e João Cavalcanti, foram presos no mesmo dia, 31 de julho de 1782, e levados para a cadeia de Aracati. Depois para os cárceres de Lisboa. Miguel e José foram punidos em 1783 com penitências espirituais (rezas, instruções de fé) em processos distintos. O POVO não conseguiu localizar documentos na Torre do Tombo, em Lisboa, com as penas de João e de Domingos. Mas há os registros que existiram. Histórias que se cruzaram nos tribunais. (CR) 


"In nomine patris et filis, et spiritus sancti..."

Cláudio Ribeiro

Enviado a Portugal
claudioribeiro@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


Anda vagabundo pelas freguezias da Granja, Serra dos Cocos, e Vila Viçoza hum homem cego com coroa aberta e intitulando-se sacerdote``. A descrição era implacável, nas comunicações entre comissários e familiares do Santo Ofício aos inquisidores. Noutro documento, as ousadias do senhor desconhecido que perambulou lesando incautos pelas veredas da serra cearense da Ibiapaba. O tal vinha ``confessando, baptizando, benzendo e exorcizando``, ``dizia missa e confessava``. 


Se a Inquisição era por demais inclemente, havia os que davam -motivos-. Como modesto jesuíta, estava ali o ``padre Francisco de Faria``, orientador das almas e de gestos. Só embuste. A coroa aberta na cabeça, roupas adequadas, a cegueira e as rugas de seus 70 anos eram o disfarce perfeito. Como se só quisesse distribuir bondades e curas. Porém, omitia seu nome verdadeiro, Félix José da Silva Gaia. Era um farsante. 

Interrogado, mão direita sobre os Santos Evangelhos, confessou até ser casado com Francisca Dias Xavier, em Quebrabó (hoje Cabrobró, Pernambuco), pelas bandas do rio São Francisco. Uma das testemunhas ouvidas, um capitão da freguesia de Amontada, ouvira até falar de um filho que o acompanhava. O falso sacerdote já estava há algum tempo em atividade. 

Já havia percorrido localidades como Varge da Vaga (hoje região dos Inhamuns), Vila Viçosa Real (hoje Viçosa do Ceará), Granja, Serra dos Cocos (hoje Canindé)... onde os trocados fossem generosos. Quase sempre cobrou por graças e benzeduras. Chegou a vender pedacinhos de fita a 80 réis dizendo ser de Nossa Senhora da Penha. Benzeu cavalos e carrancas, curava feitiços e mordidas de cobras. Tirava proveito da fé e alguma tragédia alheia. Antes do golpe, chegou a pedir esmolas. 

Segundo seu processo, o de número 3972 no Tribunal do Santo Ofício, Inquisição de Lisboa, Félix Gaia foi facilmente achado na região. Poucos talvez tivessem aquela aparência, um velho ``seco de corpo e sego`` & os escrivães costumavam alterar grafias de algumas palavras até num mesmo processo. A autuação aconteceu em Viçosa no dia 3 de julho de 1787, na povoação chamada São Pedro. De lá, foi levado para a Villa de Sobral. O então visitador Bernardino Vieira Lemos, que tinha a função fiscalizadora da dita fé praticada nas villas e freguesias da capitania, inteirou-se do caso por documentos que lhe chegaram em Olinda. 

No depoimento, Félix disse ter feito o que fez ``regido da tentação do demônio por se ver cego, pobre e necessitado``. O nome Francisco Faria era de um primo que se formara religioso. Aproveitou-se. Para curar cabeças cheias de ilusões de feitiços ou o que aparecesse. Repetiu até como benzia: ``In nomine patris, et filis, et spiritus sancti...``. Os autos inquisitoriais não trazem a sentença. Félix foi levado em 10 de março de 1788 para Olinda, para ser trancafiado num aljube. Era o cárcere dos padres & mesmo que ele nunca tenha sido um. De lá, não há notícia se saiu. 


Antonios sob a mira do tribunal



22 Mai 2010 - 21h52min


Guilherme Studart, o Barão de Studart, trabalhou na primeira citação de processos da Inquisição no Ceará: ``Por conta de bigamia figuram num auto de fé em Lisboa Antonio Correia de Araujo, entalhador, de 52 annos, natural de Landim, Concelho de Barcellus e morador na Villa do Icó, e Antonio Mendes da Cunha, pedreiro, 40 annos, natural de Coura e morador em Quixeramobim``. 


O Antonio entalhador era casado em Braga, Portugal. Veio para a Bahia e depois Ceará. Alegou ter recebido carta de um irmão avisando-o de viuvez. Assim justificou o novo casório. Mas a mulher não havia morrido. Punido em 1761, foi degredado para Castro Marim (Portugal). Pediu perdão, conseguiu licença para vir ao Ceará em 1762. Foi ficando. Em 1765, estendeu a permanência por mais dois anos. Morreu aqui ou foi esquecida a pena, disse o Barão. 

Já o Antonio pedreiro era ``sujeito, ao que parece, de proceder irregular``, observou o Barão. Foi condenado em 1761. Cumpriu pena no arsenal das galés por três anos. Em 1764, pediu revisão da sentença para degredo, ``para tratar de moléstias``. Um cirurgião dos cárceres confirmou o padecimento. Em 15 de setembro de 1764 foi liberado de mais dois anos de pena.


Governos, segredos e dogmas

Cláudio Ribeiro

Enviado a Portugal
caudioribeiro@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


Um homem do governo da Capitania do Ceará Grande também caiu na lista da Inquisição. Na carta-denúncia, enviada pelo padre Antonio José Cavalcante ao comissário do Tribunal do Santo Ofício Joaquim Marques de Araújo, em 8 de dezembro de 1802, o palavreado não poupava Francisco Luís de Mariz Sarmento: 


``Não só tem mofado e mettido à bulha publicamente os preceitos da Igreja, os seus sacramentos e actos de piedade os mais santos uteis e necessários; mas tão bem tem commettido a sacrílega temeridade de insultar directamente mesmo Deos na adorável pessoa do Espírito Santo``. 

Sarmento era secretário do governo no Ceará, que justamente naquele ano era exercido por uma junta governativa. Fazia exatamente um mês que havia morrido o primeiro governador do Ceará Grande, Bernardo Manuel de Vasconcelos. Sarmento, ``homem acreditado, instruído, influente``, fora tratado na mesma carta por ``miserável, desgraçado homem``, acusado de blasfêmias e libertinagem. 

O padre, morador da Villa de Fortaleza, listou argumentos e reclamava ``falta de providências``. As difamações a Deus e aos dogmas religiosos teriam sido por Sarmento em missas que faltava costumeiramente ou incentivando que familiares ou conhecidos também não frequentassem. Até bate-boca por isso teria acontecido com um vigário da Villa Nova do Arronches (hoje bairro Parangaba). 

Sarmento teria aversão à vida mística, segundo o registro. O padre o denunciou também por consumir ``livros prohibidos``. Entre eles, La Phylosophie du bons sens (A Filosofia do Bom Senso), de Jean-Baptiste Boyer D´Argens (1722-1759), e La Antiquité dévoilée par ses usages (A Antiguidade Desvendada por seus Hábitos), de Nicolas-Antoine Bourlanger (1704-1771). Assim como a vigilância aos fiéis, a Inquisição também fazia cerco a publicações que considerasse ousadas demais. 

A mais agressiva das delações foi a de que Sarmento, agora chamado de ``monstro da maldade, triste desgraçada victima da lascívia``, ``cometeu pecado de molice (?) com um índio parvolo`` (párvulo, pequenino) nos fundos da casa de um padre, e logo após ter se confessado. 

Não foram mesmo meias palavras contra o então secretário. O denunciante falou de ``notícias de 1800`` e disse que Sarmento ``foi já penitenciado em Lisboa, segundo dizem pelo Santo Tribunal da Inquisição``. O POVO procurou registros desta afirmação no acervo da Torre do Tombo, em Portugal, mas não conseguiu localizar nenhum documento a respeito. 

Francisco Luís de Mariz Sarmento era casado com Maria Amélia de Figueiredo. Tinham um filho, Alexandre Maria de Mariz Sarmento, que inclusive veio a ser contador-geral do Tesouro e foi um dos fundadores, em 1838, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. 

A família Mariz Sarmento teve até título de nobreza em Portugal. Mas a Inquisição não perdoava de antemão. A queixa do padre Cavalcante chegou às mãos dos inquisidores. O comissário enviou comunicação em 21 de janeiro de 1803. Virou processo (nº 13.977). O arquivo da Torre do Tombo só consta a carta do padre. Em 1802, a Villa de Fortaleza tinha pouco mais de 3 mil habitantes. O caso deve ter virado fofoca fácil na época. 


Trecho de carta que denuncia padre



22 Mai 2010 - 21h52min


``A obrigação que tenho de defender a religião a custa do próprio sangue e da mesma vida, não só como um dos professores do Christianismo, mas tão bem como hum ministro de Jesus Christo, ainda que indigno, he quem unicamente me move nesta occazião a por na prezença de Vª Sª os escandalosos procedimentos, e malignas proposiçoens, com que o Bacharel Francisco Luís de Mariz Sarmento, secretario de Governo desta Capitania, ousadamente tem incentivado contra a disciplina da Igreja, e os mais importantes dogmas da nossa crença. 


Este miserável, e desgraçado homem, que por libertino, e sectário das doutrinas condemnadas, e prohibidas pela Igreja, foi já penitenciado em Lisboa, segundo dizem, pelo Santo Tribunal da Inquisição, esquecido disto mesmo, e da sua salvação, de tal sorte se tem conduzido a respeito da Religião, que além do universal escandalo, que tem causado nesta Capitania, a todos deixa duvidosos da sua fé, e persuadidos da sua libertinagem...`` 


O português e o crioulo baiano



22 Mai 2010 - 21h52min


A história do português João José de Medeiros Albuquerque e a do crioulo baiano André Soares da Cunha se juntam por simples trâmite inquisitorial num mesmo processo (nº 7043) no Tribunal do Santo Ofício. São ocorrências diferentes, distantes, mas têm a honra, bigamia e o Ceará como elo. 


João José de Medeiros, nascido nos Açores, era viajante no Brasil. Morava na Villa Real de Sobral, aqui no Ceará Grande, quando foi chamado na casa do capitão Antonio Furtado dos Santos, ``a quem devia obrigações e boa amizade``. Ouviu do então comandante da villa que a neta Francysca Maria Ribeira Borba ``estava desacreditada por dizerem que elle (João) casava com ella``. O capitão estava era fulo e cobrava-lhe explicações. 

João havia engabelado a moça e ali, diante da bronca e ``por algum temor de lhe tirarem a vida, por ser terra de fascinorozos`` (o poder do capitão o assustava), admitiu se casar. Era por volta de 1793. Mas, ele já era marido de outra, Francisca Xavier, dos tempos em que vivera na capitania do Gram-Pará. João viveu de remorsos por um ano. Era a honra do avô da nova mulher e a sua. 

Numa viagem a trabalho, nunca mais voltou a Sobral. Foi a Pernambuco, Bahia e, no Rio de Janeiro, cinco anos depois, apresentou-se no convento da Virgem Maria do Monte do Carmo e contou sua história. Por ser cristão, pediu para ser punido. 

Já o escravo André, morador do Rio do Peixe, nas margens do São Francisco, da Bahia, veio se esconder nos Inhamuns. Fugiu desonrado. ``Casando e fazendo vida marital com sua primeira mulher, esta adulterando, fugira de sua companhia, e elle envergonhado se mudara de seo domicílio para os sertoens do Inhamum``. 

Casou de novo, também. Arrependido, cristão, foi outro a se denunciar e pedir castigo. Os arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, não falam de penas que sofreram. (CR) 


Aracathy: heresias de um judeu

Cláudio Ribeiro

Enviado a Portugal
claudioribeiro@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


Também houve denúncia formal à Inquisição contra judeus nas plagas sertanejas do Ceará Grande. Na ribeira do Jaguaribe, o médico José Balthazar Auger, italiano de Turim, morador da então villa do Aracathy e devoto frequentador da matriz de Nossa Senhora de Russas (ainda pertencente àquela vila), denunciou um tal Gaspar Roiz Reis Calçado. Delatou que o homem, também residente ali, fazia ``coisas escandalosas contra a Santa Fé Cathólica indicativas de judaísmo``. 


Gaspar já seria conhecido na freguesia de lá por ironizar, debochar, ser indiferente ou até xingar e execrar alguns ritos e cultos católicos. ``Tido, havido e reputado como judeu e cristão novo``. Uma das acusações descreveu que, certa vez, o denunciado afirmou que ``Maria Santíssima não podia parir e ficar virgem``. Ou, numa Semana Santa, apontou que ``a imagem do senhor Jesus amarrado a coluna (da igreja) era hum macacão``. 

O médico apresentou a denúncia no dia 21 de novembro de 1758, ao comissário do Santo Ofício Antonio Alves. Os comissários eram, ao lado dos familiares, os principais representantes da Inquisição nos locais de morada. Eram os olhos e ouvidos da Igreja naqueles anos. Balthazar foi a Recife para oficializar a queixa. Dissera que não era nada de inimizade, mas ``desencargo de consciência e temor a Deus``. Tudo aqui ainda era atrelado a Pernambuco, o governo e a Igreja. 

Aracati, àquela época, era a vila mais próspera da capitania do Ceará Grande. Era nosso principal ponto comercial, com oficinas de charque e negócios em couro curtido. Os judeus foram o principal povo a sofrer a perseguição dos tribunais eclesiais, também nos rincões nordestinos - para onde vieram, escurraçados da Península Ibérica (Portugal e Espanha) pela Inquisição. 

Ainda das feitas atribuídas a Gaspar, o italiano disse que ele costumava ir à igreja ``e com grandes risadas escarnecia (zombava) da santa imagem`` e que ``as cerimônias da Semana Santa eram macaquice``. Num dos muitos atritos que teria tido com vários da vila, foi contado por Balthazar que Gaspar afirmou: ``tanto fazia ouvir missa ou não porque não enchia a barriga``. Disse até que a igreja do Aracati não servia para nada que não fosse fazer necessidades fisiológicas nela. 

Mesmo que o médico tenha negado inimizades, havia, sim, uma rixa intestina com o judeu Gaspar. No próprio relato feito ao comissário, o italiano listou uma vizinhança toda que, segundo ele, poderia testemunhar o que acabara de contar. Do mestre caldeireiro do curtume e sua mulher ao tenente, também o tabelião público, o capitão e outros casais. 

Todos referenciados para o comissário como probos e cristãos velhos, fidedignos e moradores do Aracathy de Jaguaribe. A Igreja exigia dessas formalidades e reputações. Um sargento-mor também foi acrescido à lista de testemunhas. 


O POVO encontrou a denúncia do médico contra o judeu de Aracati num dos cadernos do promotor, o de número 121. Estava arquivado no microfilme 1.444 na Torre do Tombo, em Lisboa. Os cadernos eram as anotações prévias das denúncias - que poderiam ou não seguir como processos. 


Pesquisadores consultados pelo O POVO apontaram que a maioria dos registros referentes ao Ceará está no caderno 328. Com ocorrências a partir da segunda metade do século XVIII, quando a colonização da capitania começou a ganhar impulso. 

Até ali, Gaspar era só um denunciado ao Santo Ofício, num andamento semelhante ao do Poder Judiciário atual. Na pesquisa com o acervo digitalizado, a partir do nome e da localidade, não houve confirmação se o caso virou processo. A apuração feita pelo comissário não dá informações também sobre a procedência de Gaspar Roiz, se era ou não nascido no Brasil. 


Denúncias incluiam até sexo com animais



22 Mai 2010 - 21h52min


e hoje, tanto tempo depois, as denúncias sugerem algum tom mais jocoso ou bizarro, à época eram escândalos religiosos. Pipocavam à mesa dos familiares da Inquisição, colhidas de fé. 


Um dos casos foi descrito por Joam Guedes, homem do Santo Ofício, numa carta de 28 de agosto de 1722. No ``Curral das Guaramirangas, distante seis legoas da aldea dos indios da serra da Ibiapaba``, Joseph Bandeira de Mello disse que um sobrinho vira ``Bento Rodrigues, homem pardo e casado com uma tapuya ter ajuntamento com uma cachorra da casa``. 

Já havia se passado nove anos do episódio, mas foi mesmo assim para o rol de acusações. Não prescrevia. Um tal Florêncio ou Floriano também ``cometera bestialidade com uma égua``. 

Um padre entregou que um escravo ``era tido e havido por sodomítico``. Tarado. ``Tão desaforado nesse vício que onde quer que topava com algum índio... o solicitava a esse pecado``. Os índios até o apelidaram por ``tibiru``. O bispo de Pernambuco alertava de excomungar também quem atacasse índias. (CR) 


Quebra de sigilo do confessionário



22 Mai 2010 - 21h52min


Regra eclesiástica: segredos de confissão são invioláveis. Pois na ribeira do Jaguaribe, freguesia dos Inhamuns, o padre Francisco Callado Bitancort caiu numa denúncia dessas de sigilismo (o nome do crime). Sacerdote do hábito de São Pedro e capelão na Villa do Icó, diziam que o padre ``era acustumado arrevellar o sigillo da confição, do que se queixavão os moradores do Sítio dos Oitis e de Jagoaribe Mirim``. 


Callado ganhou a pecha de falador dos pecados dos outros e acabou na boca do povo. O próprio nome o contradizia, curiosamente. A acusação foi feita ao comissário do Santo Ofício Gabriel da Costa Louzadas no dia 20 de agosto de 1757, na fazenda Quixadá, Ribeira do Quixelô. À época era tudo parte do grande Jaguaribe. 

O denunciante foi um morador da região. O comissário chegou a considerar que a distância atrapalhou na apresentação rápida da acusação. O caso, arquivado em microfilme na Torre do Tombo, em Lisboa, foi registrado num dos cadernos do Promotor, número 121. (CR) 


Os pecados de todos os tempos

Ana Mary C. Cavalcante

anamary@opovo.com.br

22 Mai 2010 - 21h52min


Para o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr, as pesquisas sobre a Inquisição alargam o horizonte para além da visão dualista do ``bem contra o mal``. Nesta entrevista, ele retoma a intolerância e as condenações à luz do século XXI. 


A Inquisição portuguesa dos séculos XVI a XIX está mais próxima do que se imagina. Não em sua forma de tribunais ou fogueiras. É o seu espírito de intolerância que ainda ronda. ``A base da Inquisição era o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos``, relaciona, nesta entrevista por e-mail, o historiador Antonio Otaviano Vieira Jr. 

Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Pará, Otaviano muda o foco do lugar comum ao pesquisar A Inquisição e o Sertão (Edições Demócrito Rocha). Para o estudioso, deve-se ir além da visão dualista do ``bem contra o mal``, de crucificação pura e simples da Igreja ou dos romances de Umberto Eco. 

``Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense``, aponta. Na condução de sua pesquisa sobre o tema, Otaviano vai tecendo ligações entre os tempos. ``O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará``, indica. (Colaboraram Cláudio Ribeiro e Demitri Túlio) 


O POVO - Acusados de bruxaria queimados vivos em fogueiras, a organização de tribunais religiosos para o julgamento de crimes contra os dogmas católicos, os autos-de-fé se convertendo em espetáculo para a cidade. O que o senhor lê de toda essa história? Qual a sua versão para a Inquisição? 

Antonio Otaviano Vieira Jr. - Os trabalhos acadêmicos sobre Inquisição ajudaram a ter uma visão menos dualista, ``o bem contra o mal``. Ou seja, não pensar a Igreja como um berço de ``crueldades`` que queimava pessoas por prazer e sadismo. A Inquisição deve ser pensada para além dos romances do Umberto Eco e dos filmes com atores famosos. Não estou defendendo as ações inquisitoriais, mas chamando atenção que a base da Inquisição era a intolerância, o medo do diferente: algo que encontramos ainda hoje nos movimentos separatistas, nos ataques homofóbicos, nas brigas entre torcidas de futebol, nas piadas racistas, nos linchamentos públicos (que nos lembra os autos-de-fé)... Enfim, leio a Inquisição como mais um momento que marca a incapacidade e o medo das pessoas em conviverem com a diferença, momento onde o diferente é pensado como inferior, pecador e por isso deve se expurgado. Temos muito que apreender com os estudos sobre a Inquisição, pois o passado é um ótimo caminho para o presente se revisitar. 



OP - A Inquisição ficou intocada por muitos anos, como bem lembra o historiador Capistrano de Abreu em prefácio para o livro Primeira Visitação do Santo Officio (de 1935). Quando se começou a mexer nesse arquivo silencioso da Igreja e como se deu essa abertura? 

Otaviano Jr. - Não acho que a Inquisição tenha ficado ``intocada`` por muitos anos; já em 1852, (ou seja, 31 anos após o fim do Santo Ofício), Alexandre Herculano escrevia um estudo clássico sobre o funcionamento da Inquisição em Portugal. Mas, o que marcou durante muitos anos esses estudos foi o foco sobre os processos inquisitoriais e sobre a organização administrativa do Santo Ofício. Por outro lado, no Brasil, os estudos inquisitoriais foram instigados inicialmente para estudar os cristãos-novos. Hoje ampliamos nossos estudos não só em relação às fontes documentais, como também temáticas variadas estão sendo analisadas. O que a documentação sobre a Inquisição está nos ensinando é a forma de pensar, de imaginar o mundo e as tensões sociais e econômicas que muitas vezes marcavam os cotidianos dos séculos XVI a XIX do Império lusitano, incluindo o Ceará. 



OP - O Tribunal do Santo Ofício perdurou por 285 anos, de 1536 a 1821. Que balanço o senhor faz da atuação da Inquisição no Brasil & qual o período e a região mais afetados por denúncias e processos, por exemplo, e o que estava por trás desse cenário local? 

Otaviano Jr. - Destaco que estou sempre falando da Inquisição portuguesa, pois também teve Santo Ofício na Itália, na França e na Espanha. Também não nos esqueçamos que tribunais religiosos não foram exclusividades de reinos católicos; Alemanha e Inglaterra (que eram países protestantes) também tiveram seus tribunais. No caso do Brasil, estávamos atrelados a Inquisição lusitana, especificamente, ao Tribunal de Lisboa. O período mais afetado é complicado dizer: por exemplo, se, por um lado, a segunda metade do século XVIII assistiu uma diminuição dos processos e denúncias inquisitoriais, foi nesse período que mais se nomeou ``espiões`` da Inquisição no Brasil. E, no caso do Ceará, também foi na segunda metade do século XVIII que tivemos mais denúncias e processos. O que quero dizer é que a força da presença da Inquisição no Brasil variou de capitania para capitania, estando atrelada ao próprio adensamento populacional das regiões, as suas importâncias econômicas e administrativas. O Ceará, por exemplo, era uma capitania periférica, e a presença da Inquisição está em sintonia com o crescimento da importância da pecuária na pauta exportadora, a criação de vilas pelo Sertão, estruturação administrativa e crescimento populacional. Mas, Rio de Janeiro, Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e o Estado do Grão-Pará e Maranhão tiveram um número significativo de denunciados e ``espiões`` habilitados, Visitações e um diversificado quadro de funcionários do Santo Ofício (Comissários e Qualificadores). 



OP - Qual a importância do rigor da Igreja (com seu Tribunal do Santo Ofício) para ajudar a monarquia a se fortificar politicamente, no Brasil, naqueles anos? 

Otaviano Jr. - A relação não era linear entre Inquisição e monarquia, apesar do primeiro inquisidor de Portugal, o cardeal D. Henriques, ser irmão do rei português. Entretanto, devemos considerar a Inquisição como mais uma forma de marcar a ingerência do Governo Português no cotidiano do Brasil & além de outras partes do Império, não nos esqueçamos do Tribunal de Goa. Mas, isso não significava que a Colônia era um simples desdobramento dos desígnios da Metrópole. Já com o Regimento da Inquisição de 1774, o Regimento era uma espécie de Guia de Ação e de Fundamentos do Tribunal, houve uma série de mudanças atrelada a influência do marquês de Pombal. Por exemplo, os feiticeiros deixaram de ser tratados como agentes do demônio e passaram a ser pensados como ``loucos``, ou ``embusteiros`` que queriam enganar o povo; assim deixaram de ser queimados e passaram a ser presos em hospitais ou prisões comuns. Trabalhei com um caso de Sobral, sobre um menino voador, que a estruturação da denúncia revela tensões entre o pensamento iluminista pombalino e práticas de cura marcadas por rituais que envolviam a bebida da Jurema, ossos de cavalos mortos no campo, imagens de santo... Falar em monarquia portuguesa é muito amplo, mas acredito que, de maneiras diferentes, governantes lusitanos se apoiaram na estrutura e na força dos Tribunais do Santo Ofício & o contrário também aconteceu. Agora sua pergunta é interessante porque nos faz pensar na manipulação da legislação e de agentes judiciais por elites políticas e, ao mesmo tempo, enveredar para a relação entre práticas cotidianas e as leis. Um tema bastante atual. 



OP - Em Portugal, a Inquisição pretendia ``recuperar o cristão``, digamos, trazê-lo de volta para a Igreja. Em contrapartida, como o senhor mesmo revela na pesquisa que resultou no livro A Inquisição e o Sertão, no Brasil, ``as denúncias não tinham grande consistência argumentativa``. As fofocas e as brigas de ocasião eram o que motivavam as denúncias no Ceará. Que perfil o senhor retrata da Inquisição no Estado? 

Otaviano Jr. - Bom, não acho que o empenho era de ``recuperar o cristão``, mas, sim, puni-lo e com isso evidenciar para a sociedade quais as práticas que eram aceitas e quais eram proibidas; lembra os presídios brasileiros, que mais enchem de medo os que estão fora do que ``recuperam`` os que estão dentro. A consistência argumentativa era baseada em outra lógica, diferente da lógica judicial de hoje: nesses casos, o ``saber por ouvir dizer`` tinha tanto peso quanto o presenciar, o mais importante & repito & era a criação de um clima de denúncia, onde a todo instante a sombra inquisitorial pairava nas situações cotidianas mais íntimas: em Recife, por ocasião da Visitação de 1593-1595, esposas denunciavam seus maridos que durante a relação sexual colocavam debaixo da cama um crucifixo, ou procuravam ter relações sexuais anais. Outros foram denunciados por dizerem, em momentos de raiva, que Maria, a mãe de Deus, não era virgem, ou que a mulher não tinha sido feita da costela de Adão e sim das fezes de um cachorro que tinha arrancado a costela da mão de Deus e comido. 



OP - E qual o perfil das pessoas envolvidas nas denúncias e nos processos a partir do Ceará? 

Otaviano Jr.- No Ceará, o delito mais comum era o de bigamia. Mas, também encontrei denúncias de feitiçaria, de bestialismo, de sodomia e sigilismo (padre que revelava segredos de confissão). O leque de denunciados é amplo: escravos, índios, altos funcionários, militares, padres... Mas, o número de casos levantados é, metodologicamente, limitado para traçar um perfil ou uma tendência geral. 



OP - O Brasil era colônia portuguesa ao tempo da Inquisição. Em que pontos as duas versões da Inquisição & a que vinha de lá para cá e a que ia de cá para lá - se cruzam e se influenciam? 

Otavianoa Jr. - Na realidade, o Brasil estava sob a tutela da Inquisição do Tribunal de Lisboa. Ou seja, os processos e as nomeações de ``espiões`` transcorriam lá. Agora, por exemplo, para a nomeação de ``espiões``, aqui, no Brasil, o Tribunal fazia vista grossa para alguns limites dos nomeados, pois se mantivesse o rigor, simplesmente, não nomearia quase ninguém. Por outro lado, muitas vezes, pela distância entre Lisboa e o Brasil, e as distâncias internas do Brasil, muitas denúncias & eu diria que a maior parte & não eram averiguadas e nem se transformavam em processo. 



OP - O desinteresse das visitações do Santo Ofício ao Brasil em relação ao Ceará foi só por causa do volume de denúncias e processos que havia aqui (numa vila ainda muito pequena naquela época) ou por algum outro motivo? 

Otaviano Jr. - Salvo o Grão-Pará e Maranhão, todas as outras Visitações do Santo Ofício aconteceram em fins do século XVI e início do século XVII. Nesse período, o Ceará não tinha muita coisa além de algumas esparsas fazendas de gado e arremedos de uma estrutura administrativa. A própria condição periférica cearense, pensemos durante todo o período colonial o Ceará nunca teve uma vila com status de cidade, não instigava muito a atenção das autoridades coloniais e menos ainda metropolitanas. 



OP - O que a Inquisição traz de novo para a narrativa do Ceará? 

O taviano Jr. - Estudar a Inquisição e sua presença em terras cearenses é ter acesso a novas possibilidades de análise sobre o período colonial cearense. E o é por trazer à tona elementos que compunham um cenário cotidiano marcado por tensões sociais, por diferentes práticas culturais, por famílias de elite, por escravos, por índios, por homens e mulheres... É estudar a configuração de realidades diárias que eram experimentadas, vivenciadas de maneiras diferentes por indivíduos diferentes. É falar de paixões, de enganos, de magia, de sexo, de casamento, de padres... 


Especiarias da memória

Demitri Túlio

Enviado a Portugal
demitri@opovo.com.br 

22 Mai 2010 - 21h52min


A extensa documentação proveniente dos cartórios da Inquisição (1536-1821), cerca de 8 milhões de peças, é um quebra-cabeça que pode revelar não só o que foi esse aparelho da Igreja Católica e da coroa portuguesa. É caminho para se chegar também a outras tramas do cotidiano da metrópole e suas colônias. 


Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, pesquisadora aposentada da Torre do Tombo, que durante 15 anos sistematizou os arquivos da Inquisição em Lisboa, sugere que os documentos revelam além dos enredos que estão nos processos dos amaldiçoados pelo Santo Ofício. A partir das fontes inquisitoriais há rotas de investigações que apontam para conflitos sociais, dificuldades econômicas, censura, movimento marítimo, arquitetura urbana, toponímia, integração de estrangeiros na sociedade portuguesa, evolução das mentalidades e outras especiarias da memória colonial. 

Por duas décadas e meia, Maria Dias Farinha, principal referência de catalogação dos arquivos da Torre do Tombo, dedicou parte de sua vida à identificação e inventário de ``uma enorme massa documental de cerca de 1.200 grossos maços`` de papéis com idade de quase cinco séculos e em estado delicado de conservação. 

Na sede da Torre do Tombo, a pesquisadora portuguesa teve de decifrar montanhas de papéis misturadas e escritas com as mais diversas tipologias e linguagens dos séculos XVI, XVII, XVIII e XVIIII. Um amontoado de documentos históricos criados a partir de 1536, com o início da Inquisição portuguesa. 

Estavam à sua disposição, por exemplo, os processos dos tribunais de Lisboa, Coimbra e Évora. Documentação do Conselho Geral, como correspondência para os vários tribunais e para comissários no Brasil, habilitações para ministros e oficiais do Santo Ofício. 

Com o fim da perseguição católica lusitana aos hereges, em 1821, e as idas e vindas da burocracia de cada governo, a Torre do Tombo incorporou em 1825 e 1836, respectivamente, os arquivos do Conselho Geral do Santo Ofício e os da Inquisição de Lisboa, além dos registros de Coimbra e de Évora. 

Além do precioso arquivo da Torre do Tombo, ainda existem registros esparsos sobre a Inquisição na Biblioteca Pública Municipal do Porto, Biblioteca Pública de Évora, Arquivo do Tribunal de Contas de Portugal e Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Na Biblioteca Nacional de Portugal ficaram, por ordem do Ministério do Reino em 16 de Setembro de 1824, livros impressos e vários códices factícios, que posteriormente foram desmembrados e catalogados como documentos. 


Revelações do século XX



22 Mai 2010 - 21h52min


Somente no início do século passado é que a Torre do Tombo abriu, para consulta pública, os arquivos da Inquisição de Portugal. Mesmo assim, sujeita a autorização do diretor da instituição. Não se tratava de proibição ou resquícios de censura da Igreja ou do governo. Segundo Maria Dias Farinha, autora do livro Os Arquivos da Inquisição (1990), a falta de um inventário dificultava as buscas e o trabalho dos pesquisadores. 


Até então havia pouca investigação sobre o tema e só com as publicações do escritor António Baião, funcionário em 1902 e depois diretor da Torre do Tombo, é que se despertou o interesse pelos arquivos. A edição do livro A Inquisição em Portugal e no Brasil promoveu uma corrida a Lisboa. 

Em 1965, por exemplo, por conta da falta de sistematização dos documentos das colônias referentes ao Santo Ofício, investigadores como Anita Novinsky, da Universidade de São Paulo, só foi autorizada a trabalhar nos depósitos da Torre do Tombo acompanhados de ``um conservador`` (atualmente o técnico superior de Arquivo). Hoje, boa parte dessa documentação está disponível na internet pelo endereço: digitarq.dgarq.gov.pt. (DT) 


Sugestão de leitura 



1. A Inquisição e o Sertão. 

A.Otaviano Vieira Jr. Edições Demócrito Rocha, 2008 


2. História das Inquisições & Portugal, Espanha e Itália, séculos XV-XIX. Francisco Bethencourt. 



3. Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, volume 1. António Baião. 



4. A Inquisição em Portugal e no Brasil, subsídios para a sua história. António Baião. 



5. Gente da Nação & Cristãos Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. José Antônio Gonçalves de Melo. 



6. Cronologia Sobralense e Raízes Portuguesas do Vale do Acaraú & índice Onomático. Padre Sadoc. Fundação Ana Lima. 



7. Confissões de Pernambuco, 1594-1595. Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil. José Antônio Gonçalves de Melo. 



8. Denunciações da 2ª visitação do Santo Ofício na Bahia. 

Marcos Teixeira. 


9. Padre António Vieira, bibliografia 1998-2008. 

Jorge Couto (coordenador). 


10. A América Portuguesa nas coleções da Biblioteca Nacional de Portugal e da Biblioteca da Ajuda. 



11. A Igreja e o convento de São Domingos de Lisboa. M.M.de Brée. 



12. Os Arquivos da Inquisição & Instruções de Descrição 

Documental. Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha. 


13. Os Baptizados em Pé & estudos acerca da origem e da luta dos cristão-novos em Portugal. Eçias Lipiner. 

















Fonte: Jornal O Povo - Caderno Especial sobre a Inquisição no Ceará.

Nenhum comentário: