sábado, 16 de janeiro de 2010

ARTIGO - Suely Chacon

O TEMPO DA MODERNIDADE: APROPRIAÇÕES POLÍTICAS CONCRETAS DE UM CONCEITO ABSTRATO *

Por Suely Salgueiro Chacon

O ritmo das máquinas aumentaria e intensificaria enormemente o ritmo natural da vida, mas não mudaria – apenas tornaria mais destruidora – a principal característica da vida em relação ao mundo, que é a de minar a durabilidade - Hannah Arendt (A condição humana)

O artigo analisa a construção da idéia de modernidade e como esta pode ser usada pelo poder político que preconiza as ações que direcionam as decisões de uma sociedade. É explicada a formação da sociedade moderna e o papel do Estado. A seguir é esclarecido o real significado de modernidade em relação ao tempo e à organização social, mostrando como o Estado é capturado pelo poder político e passa a interferir diretamente nessa organização social, na apropriação do meio ambiente (espaço de convivência) e na geração da exclusão social.





A SOCIEDADE MODERNA
A sociedade moderna, historicamente definida, foi gestada nos séculos XVIII e XIX, e tem como características essenciais: a constituição e centralidade do indivíduo; a transformação dessa centralidade em uma norma única e universal; a instituição do poder como um lugar e não mais centrado em uma pessoa, família ou grupo social (o poder torna-se impessoal), e a detenção do poder político é resultante do processo de escolha realizada pelos membros da comunidade política (da qual ninguém é excluído); é uma sociedade aberta, de mobilidade social; suas organizações, práticas e valores, são regidos pela racionalidade (que troca o saber divino pelo saber laico, da ciência); ignora a exterioridade, desconhece fronteiras; não se confunde com os Estados-nação, simples instrumento de sua realização; sua base econômica é essencialmente universal, o capitalismo. E é nesse tipo de sociedade que surgem os mecanismos de resolução de conflitos. (NASCIMENTO, 2001a: 87-88)
Nascimento (2001) ressalta que as sociedades primitivas não conheciam o conflito assim como a sociedade moderna o , muito menos dispunham de mecanismos de resolução para os mesmos. Se surgisse uma disputa ou divergência existiam dois meios de superação: a força bruta, pela qual vencia o mais forte, ou a cisma, quando os grupos se separavam pelo desentendimento. Isso manteve aquelas sociedades fracas, pequenas e sempre em fragmentação, até que surgisse um povo, ou um líder mais forte que subjugasse muitas dessas sociedades, formando impérios.
A resolução e a mediação dos conflitos vai acontecer de fato com o advento do Estado, ainda na Antigüidade. Também o aparecimento das primeiras noções de leis e direito contribui para isso. Porém, ainda é a força ou a opinião dos líderes que prevalece decisivamente, mesmo nas negociações, e mesmo quando existiam normas e regras estas eram constantemente ignoradas. Somente com a sociedade moderna passam a existir condições de negociação real e contínua, buscando-se então soluções mais pacíficas e consensuais para a resolução dos conflitos.
O grau de complexidade adquirido pelos conflitos é uma característica das sociedades modernas. Se antes os conflitos explodiam em disputas definitivas e visíveis a todos, a partir da modernidade, do domínio da razão e das leis, e da centralidade do indivíduo, os conflitos são contidos, internalizados, normatizados e institucionalizados, tornando-se invisíveis para quem não os quer ver.
Nesse sentido, o conflito é a matéria-prima da política, que manipula os mecanismos necessários para a contenção da luta.
Assim, conter os conflitos é uma tarefa diária da sociedade moderna, e o Estado se responsabiliza pela criação e manutenção de mecanismos que garantem essa ordem. Porém, nãogarantias de uma paz eterna e a manifestação de conflitos representa uma maneira de protestar contra algo que não se compreende ou não é aceito por alguém ou por um grupo. Quando isso acontece, os conflitos se apresentam e podem ser caracterizados, segundo Nascimento (2001: 91), por tensões normais que ocorrem na sociedade moderna desde sua origem (junto com o capitalismo, o individualismo e os novos costumes); ou por um confronto de interesses entre grupos sociais; ou ainda por anomias, que resultam da ausência de normas que ofereçam objetivos claros aos indivíduos. Dessa forma,
Os conflitos são meios pelos quais os atores sociais dirimem suas divergências, interesses antagônicos ou pontos de vista conflitantes, possibilitando que a sociedade alcance certa unidade. Os conflitos são fatores de coesão social, e não de distúrbio. (NASCIMENTO, 2001:94).

ESTADO E MODERNIDADE
Ao identificar a regulação, mediação e resolução institucionalizada dos conflitos com a modernidade, Nascimento (2001) ajuda a reforçar a percepção de que o Estado está no cerne da questão da modernização, independente do grupo que ocupa o poder e mesmo do tempo e do espaço em que ocorre esse movimento.
Mesmo com a desarticulação de várias estruturas do Estado, promovida sob a égide do neoliberalismo, o Estado continua como o principal ente promotor do desenvolvimento. A tentativa de impor o mercado como ente regulador das relações sociais, principalmente a partir dos anos 1980, provocou um grande abalo no Estado do Bem-Estar, concebido com base nas idéias keynesianas, após a 2ª. Guerra Mundial, que entrou em crise em todo o mundo.
Contudo, esse movimento, que também se dizia modernizador, não foi suficiente para enfraquecer totalmente o Estado. Por outro lado, o fracasso das políticas neoliberais fez com que as forças mundiais do capitalismo se voltassem novamente para o Estado, dessa feita com o intuito de reforçar seu papel de reprodutor da ideologia capitalista e de mantenedor da ordem. A tentativa de abalar a legitimidade do Estado foi revertida e este fortifica seu papel como aliado do capital.
Santos (1998:1) ressalta que “dos dois paradigmas de transformação social da modernidade, a revolução e o reformismo, o primeiro foi pensado para ser exercido contra o Estado e o segundo para ser exercido pelo Estado”. O reformismo foi um movimento protagonizado pela classe operária para contrapor-se aos ditames do capitalismo e à regulação exclusiva do mercado. Isso garantiu que se criassem instituições que garantiram os interesses da sociedade em três instâncias maiores: a regulação do trabalho, a proteção social contra os riscos sociais e a segurança contra a violência. Essas instituições se articularam com base em três princípios da regulação da modernidade: o princípio do Estado, o princípio do mercado e o princípio da comunidade. Segundo Santos:
Estabeleceu-se um círculo virtuoso entre o princípio do Estado e o princípio do mercado de que ambos saíram reforçados, enquanto o princípio da comunidade, assente na obrigação política horizontal cidadão a cidadão, foi totalmente descaracterizado na medida em que o reconhecimento político da cooperação e a solidariedade entre cidadãos foram restringidos às formas de cooperação e de solidariedade mediadas pelo Estado. Nesta nova articulação regulatória, o potencial caótico do mercado, que se manifestava sob a forma da questão social – anomia, exclusão social, desagregação familiar, violência –, é mantido sob controle na medida em que a questão social entra na agenda política pela mão da democracia e da cidadania. Politizar a questão social significou submetê-la a critérios não capitalistas, não para a eliminar, mas tão para a minorar e, nessa medida, manter sob controle o capitalismo enquanto conseqüência (a questão social) significou legitimá-lo enquanto causa. (SANTOS, 1998:1-2)
O reformismo defendia que a origem dos problemas a serem superados era a própria sociedade, que então deveria ser o objeto da reforma, enquanto o Estado era a solução e, portanto, o sujeito da reforma.
Com a crise do reformismo, no entanto, o Estado passou a ser visto como problema e se transformou em objeto de uma reforma, a reforma do próprio Estado. Ou seja, o outro lado da crise do reformismo é a própria crise do Estado.
Nesse contexto, o mercado surge como o ente regulador das relações produtivas e mesmo sociais, substituindo em grande parte o Estado. Essa premissa se fortalece a partir da ruptura real ocorrida com o advento dessa sociedade moderna, que tem como base as idéias do iluminismo e do liberalismo econômico. O capitalismo se torna o modo de produção principal da sociedade ocidental e vai se fortalecer ao longo do tempo, provocando uma série de conseqüências, como a urbanização e o avanço tecnológico, que modificam para sempre a forma de se relacionar do ser humano.
Mas, a continuidade do processo levou ao retorno do Estado como parceiro do mercado, e o primeiro continua como protagonista das grandes decisões. Isto significa que não se pode ignorar o papel do Estado no entendimento das motivações que levam a um movimento de mudança da sociedade.
Dessa forma é que a sociedade moderna está “oficialmente” posta, mas na verdade a modernidade se reproduz ao longo de um processo que se renova, conforme o momento histórico e conforme as forças no poder preconizem ou não uma mudança.

A MODERNIDADE E O TEMPO
A idéia de tempo, que passa despercebida nos debates cotidianos é a chave para entender o real significado da modernidade. O tempo presente é o tempo da modernidade (BARTHOLO JR., 2001). Com base na interpretação de Bartholo Jr., a modernidade pode ser vista como uma atitude e não apenas como um momento histórico. Assim, é possível identificar modernidade em diferentes etapas da história de uma sociedade, pois:
Ser moderno é afirmar uma primazia do tempo presente, numa imensa e radical ousadia de fazer do tempo presente a morada do juízo crítico. A modernidade está sempre em tensa relação com outro tipo de atitude, que podemos chamar, numa designação genérica, de tradicional (BARTHOLO JR., 2001: 23).
O movimento de modernização começa a acontecer quando uma parcela significativa de um grupo põe em prática uma atitude crítica, que questiona o que está posto até então. Ou seja, a modernidade se instaura quando os valores e a organização cultural e social são questionados e se gestam novos valores, que se contrapõem aos antigos. Assim, é preciso identificar o que caracteriza o tradicional, para que se perceba o que significa a modernidade em um dado momento.
Nãotambém uma “modernidade pura”. Existem modernidades que se identificam ao longo da história da humanidade, pela própria condição humana, a cada momento que se exerce o juízo crítico e se instaura uma tensão entre o tradicional e o novo. Nesse sentido, ligar a modernidade exclusivamente à ciência e o tradicional à religião é outro erro comum. Tanto a ciência pode se fundamentar em valores considerados tradicionais como uma crença religiosa pode inovar e superar tradições. O que vai determinar a modernidade é a capacidade de questionar, de conformar de fato o novo, de ter a atitude de exercer o juízo crítico (BARTHOLO JR., 2001).
A modernidade pode ser encontrada em fases históricas distintas. Portanto, se a concretização relativa da modernidade ocorre em diferentes momentos da história, cada momento é um tempo presente de realização da modernidade, conforme o sentido que esta incorpora em confronto com o que deve ser superado, identificado normalmente como o tradicional.
Assim, a idéia de modernidade inspira o imaginário das sociedades de diferentes modos, conforme sua formação histórica, mas comumente o moderno é identificado de forma dicotômica, como o oposto do tradicional, a superação do atraso, a inserção no mundo tecnológico. Usar os termos conceituais modernidade ou moderno passou a ser algo comum no discurso cotidiano das pessoas em geral, de empresários e principalmente dos políticos. Promover a modernidade vem sendo a ordem do dia por várias décadas, e o fato de que essa modernidade vem se modificando ao longo do tempo tem passado despercebido. O moderno é posto por quem o defende como o contrário de algo velho, superado. Dicotomicamente, o moderno é bom e o tradicional é ruim.

UM EXEMPLO: MODERNIDADE E POLÍTICA NO BRASIL E NO SERTÃO DO CEARÁ
Para Buarque (1991:31), “na civilização ocidental, a história de cada país tem sido a história das mudanças necessárias à construção de sua modernidade”. E no Brasil não foi diferente, contudo não aconteceram de fato grandes rupturas na nossa história. Na verdade o que é comum é uma mudança na “metodologia política”, sem que haja uma mudança real na sociedade. Os momentos de modernização da sociedade brasileira são identificados por Buarque (1991) com momentos de crise, ressaltando que no Brasil se repete o movimento de modernização arcaica.
Ou seja, os dirigentes do país, comprometidos com estruturas essenciais que alimentam a crise, não implantam medidas de mudança real, apenas disfarçam seus atos de continuísmo com discursos de modernização.
Nas últimas décadas do século XX, um movimento global de mudança, fortemente ligado à idéia de liberalização econômica, foi capitaneado pelo boom tecnológico que tornou o acesso à informação e o rompimento virtual das fronteiras geográficas e culturais os ícones desse novo processo de modernização.
Nesse sentido, o papel do Estado foi mais uma vez questionado e representado como um atraso quando intervinha nos processos econômicos e impedia a livre iniciativa. Foi forjado todo um arcabouço teórico pelo neoliberalismo, para justificar essa posição e dar mais poder à iniciativa privada. Esse é um movimento claro de superação de posições tradicionais, mas não é necessariamente um movimento saudável que possa ser generalizado. Nem definitivo. Dessa forma, outro ponto a ser atentado, quando se fala de modernização, é que nem sempre este é um movimento unânime e muito menos legítimo.
Ao estudar o Sertão do Ceará (CHACON, 2007) percebi que seus habitantes seguem submetidos a um estado de coisas em que a política (no sentido de politics) e a política (no sentido de polícy) se entrelaçam de forma promíscua.
O Estado é capturado e as políticas públicas ao invés de modernizarem, servem para manter o que de mais perverso tem na tradição da região: o clientelismo. Ao desprezar aspectos como a cultura, a prática do discurso da sustentabilidade tem mostrado a falácia da preponderância da dimensão econômica de mercado. Esta é apenas uma das faces do desenvolvimento sustentável, que deve considerar também as dimensões social, ambiental e institucional.
Na medida em que essas políticas não respeitam o lugar e as pessoas, não colocando estas como seu foco central, também não conseguem se traduzir em melhorias para vida neste lugar. E, além disso, quando as políticas não se mostram sintonizadas com a cultura do local e são determinadas por pensamentos e interesses exógenos, resultam em fracasso e, mais que isso, contribuem para a desmobilização desta sociedade.
O sertanejo protagoniza um processo cada vez mais intenso de migração, por não encontrar no Sertão a motivação para permanecer. Não experimenta a sensação de pertencimento.
A “modernidade” dos discursos políticos não significa melhoria na qualidade de vida, enquanto a “modernidade” trazida pelas inúmeras parabólicas o remete sem cuidado para um mundo urbano que enfeitiça no início para desiludir no dia-a-dia perverso das periferias das grandes cidades.
Essas reflexões remetem a um problema que é exacerbado e ao mesmo tempo justificado pela modernidade em todo mundo: o aumento da exclusão social, da miséria, da fome e da violência. É o resultado da intensa urbanização, da falta de planejamento desse processo e principalmente do desaparecimento gradual do cuidado pelo outro, pelos semelhantes, substituído pelo individualismo e pela competição, tônicas do mundo “moderno”. E para além da exclusão, a sociedade começa a produzir os “desnecessários”, seres que não conseguem nem mesmo sobreviver perifericamente no sistema produtivo vigente e “desaparecem” das estatísticas. O que vamos fazer para mudar essa tendência?

BIBLIOGRAFIA
ARENDT, Hannah. A condição humana. 8a Ed. Revista. Tradução de Roberto Raposo. Prefácio de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
BARTHOLO JR., Roberto S. “A mais moderna das esfinges: notas sobre ética e desenvolvimento”. In: BURSZTYN, Marcel (org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. (Coleção Terra Mater)
BUARQUE, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira e uma proposta alternativa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.
CHACON, Suely Salgueiro. O Sertanejo e o caminho das águas: políticas públicas, modernidade e sustentabilidade no semi-árido. Fortaleza: BNB, 200. Série Teses e Dissertações. Vol. 8.
FURTADO, Celso. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974.
LEFF, Enrique. Saber ambiental. Sustentabilidade, racionalidade, complexidade, poder. Trad. Lúcia Mathilde Endlich Orth. Petrópolis-RJ: Vozes, 2001.
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. “Dos excluídos necessários aos excluídos desnecessários”. In: Bursztyn, Marcel (org.) No meio da rua: nômades, excluídos e viradores. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. pp 56- 87.
NASCIMENTO, Elimar Pinheiro do. “Os conflitos na sociedade moderna: uma introdução conceitual”. In: Bursztyn, Marcel (org.). A difícil sustentabilidade: política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Garamond, 2001. (Coleção Terra Mater)
NASCIMENTO, Elimar. “Educação e desenvolvimento na contemporaneidade”. In: BURSZTYN, Marcel (org.) Ciência, ética e sustentabilidade: desafios ao novo século. São Paulo: Cortez; Brasília: UNESCO, 2001a.
SANTOS, Boaventura de Sousa.A reinvenção solidária e participativa do Estado”. Anais do Seminário Internacional Sociedade e a Reforma do Estado. São Paulo: MARE, 26-28 de março de 1998.
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.

* Este artigo foi originalmente publicado na minha Coluna do site do Conselho Federal de Economia - COFECON (http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=1015&Itemid=103), em 10-09-07. Foi reproduzido depois em vários sites, dentre eles o da Revista Fator Brasil (http://www.revistafatorbrasil.com.br/ver_noticia.php?not=19291)

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